quinta-feira, 21 de maio de 2015
A descoberta do mundo dos sons
Ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço demais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrer antes de alguém chegar
ainda não há uma flor na boca
para os poetas que estão aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem
ainda não há nada no pulmão direito
ainda não se respira como devia ser
ainda não é por isso que choramos às vezes
e que outras somos heróis a valer
ainda não é a pátria que é uma maçada
nem estar deste lado que custa a cabeça
ainda não há uma escada e outra escada depois
para descer à frente de quem quer que desça
ainda não há camas só para pesadelos
ainda não se ama só no chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração
[António José Forte]
A obscura palavra do deserto
Tão bela como a mão da amada
sobre o mar.
Tão sozinha.
Escrevo para ti. A dor é uma concha. Nela se ouve o coração perlar.
Escrevo para ti no limiar do idílio, para a planta das folhas de água. dos espinhos de chamas, para a rosa de amor.
Escrevo para nada, para as palavras luzentes que a minha morte traça, para o instante de vida eternamente devido.
Tão bela como a mão da amada
sobre o sinal.
Tão sozinha.
Escrevo para todos. Escrevo-te de uma país de pesa como os passos do forçado, de uma cidade igual às outras onde os gritos camuflados se torcem nas montras; de um quarto onde as pestanas a pouco e pouco destruiram o silêncio.
Tu és, predestinada destinadora, a minha mão de escrever; alegre inspiradora do dia e da noite.
Tu és o colo de cisne desento de azul.
Tão bela como a mão da amada
sobre os olhos.
Tão doce.
[Edmond Jabès]
segunda-feira, 18 de maio de 2015
Ah, as grandes questões de uma vida
«By choosing to live above the ordinary level we create extraordinary problems for ourselves. The ultimate goal is to make this earth a paradise.
(…)
For me it is no problem to depend on others. I am always curious to see how far people will go, how big a test one can put them to.
(...) It’s only when we demand that we are hurt. I, who have been helped so much by others, I ought to know something of the duties of the receiver. It’s so much easier to be on the giving side. To receive is much harder — one actually has to be more delicate, if I may say so.»
[A Literate Passion: Letters of Anaïs Nin and Henry Miller, 1932-1953]
Tuas mãos de soldado a arder em febre
depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas ambas, tão claras,
tão seguras, são as mãos de um soldado a arder em febre,
aves a percorrer o seu novo deserto.
[Mário Cesariny]
tão seguras, são as mãos de um soldado a arder em febre,
aves a percorrer o seu novo deserto.
[Mário Cesariny]
Dois tropeções na ternura
É simples a separação.
Adeus.
Desenlaçado o último abraço, uma pressa de dar costas um ao outro.
Já não há gestos. O derradeiro (impossível) seria não desfazer o abraço.
Pressa de cada um retomar o outro na teia lenta da relembrança.
Não desfazer o abraço. Ficar de face encostada ao niagara dos cabelos.
Sobram fotografias, voz no gravador, um bilhete na caixa do correio.
Sobra o telefone.
Tensão-telefone. Possibilidade de voz não póstuma.
No gravador, voz de ontem, de anteontem. De há anos.
Sobra o telefone. Mudo.
Retininte?
Sobrarão cartas. Sobra a espera.
Na teia lenta da relembrança, retomo-te em memória recente: na praia da ternura onde nos enrolámos e desenrolámos desesperados de separação.
Sobra a separação.
[Alexandre O'Neill]
domingo, 10 de maio de 2015
sexta-feira, 1 de maio de 2015
Enganei-me na idade que tenho, ou terá sido na razão?
que o meu pensamento caminhe pelo faminto
e destemido e sedento e servil
e mesmo que seja domingo que eu me engane
pois sempre que os homens têm razão não são jovens
[e.e. cummings]
e destemido e sedento e servil
e mesmo que seja domingo que eu me engane
pois sempre que os homens têm razão não são jovens
[e.e. cummings]
A firmeza do chão pugnando contra meus pés
nº 237 - Parcialmente, a santidade consiste na capacidade de praticar transgressões bem orientadas. Por exemplo: matando em nós os fantasmas tutelares. Sem ternura. É assim que se atinge a múltipla orfandade.
nº 238 - O que pensará uma formiga ao ser contemplada por uma mosca poisada na parede? Quanto mais se pensa no sofrimento mais se compreende que tudo é devido a um incomensurável não-saber.
nº 239 - Tudo está aqui para alguma coisa, para desempenhar um papel, uma missão, pensamos utilitariamente. Eu, gosto das portas. A porta entreaberta, por exemplo: irá fechar-se? irá abrir-se? dar passagem? Oh subtil porta que tão indiferentemente abres-fechas: nem sei se olho para dentro ou de dentro.
nº 240 - Os livros quando são lidos por leitores apaixonados, alegres soltam suas folhas coloridas pelos ares da mente, guardião involuntário em todas as ocasiões. Este é um discurso cuja antiguidade reconstituo ludicamente enquanto escondo a ferida do tempo.
nº 241 - Era uma vez uma pessoa que andava sempre com uma palavra debaixo da língua. Quando a tinha na ponta falava, dando pequenos estalos de prazer. Depois lambia os beiços gulosamente. Estamos aqui à espera de quê? Imagina-acção.
nº 242 - Vou de comboio. Penso no terror que nos habita, que nos segue como imensa ignorada cauda. Chegando à estação vejo o meu rosto reflectido no vidro da janela. Olho fixamente o meu próprio rosto.
nº 243 - Ia pela rua fora, como de costume, quando vejo uma porta entreaberta que dava para um corredor muito comprido. Entro. No fundo há uma porta fechada. Bato à porta. Uma voz pergunta: quem é? Sou eu, digo. Eu quem? respondem. E não abrem a porta.
[Ana Hatherly]
Quando os dedos se renomeiam e passam a querer dizer outras coisas
Aceitar o dia. O que vier.
Atravessar mais ruas do que casas,
mais gente do que ruas. Atravessar
a pele até ao outro lado. Enquanto
faço e desfaço o dia. O teu coração
dorme comigo. Agasalha-me as noites
e as manhãs são frias quando me levanto.
E pergunto sempre onde estás e porque
as ruas deixaram de ser rios. Às vezes
uma gota de água cai ao chão
como se fosse uma lágrima. Às vezes
não há chão que baste para a enxugar.
[Rosa Alice Branco]
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