sexta-feira, 1 de maio de 2015
A firmeza do chão pugnando contra meus pés
nº 237 - Parcialmente, a santidade consiste na capacidade de praticar transgressões bem orientadas. Por exemplo: matando em nós os fantasmas tutelares. Sem ternura. É assim que se atinge a múltipla orfandade.
nº 238 - O que pensará uma formiga ao ser contemplada por uma mosca poisada na parede? Quanto mais se pensa no sofrimento mais se compreende que tudo é devido a um incomensurável não-saber.
nº 239 - Tudo está aqui para alguma coisa, para desempenhar um papel, uma missão, pensamos utilitariamente. Eu, gosto das portas. A porta entreaberta, por exemplo: irá fechar-se? irá abrir-se? dar passagem? Oh subtil porta que tão indiferentemente abres-fechas: nem sei se olho para dentro ou de dentro.
nº 240 - Os livros quando são lidos por leitores apaixonados, alegres soltam suas folhas coloridas pelos ares da mente, guardião involuntário em todas as ocasiões. Este é um discurso cuja antiguidade reconstituo ludicamente enquanto escondo a ferida do tempo.
nº 241 - Era uma vez uma pessoa que andava sempre com uma palavra debaixo da língua. Quando a tinha na ponta falava, dando pequenos estalos de prazer. Depois lambia os beiços gulosamente. Estamos aqui à espera de quê? Imagina-acção.
nº 242 - Vou de comboio. Penso no terror que nos habita, que nos segue como imensa ignorada cauda. Chegando à estação vejo o meu rosto reflectido no vidro da janela. Olho fixamente o meu próprio rosto.
nº 243 - Ia pela rua fora, como de costume, quando vejo uma porta entreaberta que dava para um corredor muito comprido. Entro. No fundo há uma porta fechada. Bato à porta. Uma voz pergunta: quem é? Sou eu, digo. Eu quem? respondem. E não abrem a porta.
[Ana Hatherly]
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