James Hillman, psicólogo analítico norte-americano, pós-junguiano e fundador da Psicologia Arquetípica, ensina-nos a olhar a traição com os olhos da alma. Ele não pergunta "quem errou?", mas "qual o daimon que se libertou com este acto?" O daimon, segundo a tradição grega e resgatado por Hillman, é o nosso padrão de alma, uma centelha divina que transporta o nosso destino interno. É ele que nos guia silenciosamente desde o nascimento, e por vezes empurra-nos a trair o exterior para sermos fiéis ao interior. Porque por vezes, é preciso trair um voto para ser fiel ao Self. É preciso quebrar uma promessa para se cumprir o destino interior.
O traído atrai a traição porque permanece na inocência do Éden. Espera amor absoluto, fusão garantida, fidelidade eterna. Mas a saída do paraíso é necessária para que o ego se separe do Pai e inicie o caminho da consciência. Toda traição é uma expulsão simbólica do Éden: a perda de uma protecção ilusória para o encontro com a verdade psíquica.
No mito crístico, o Pai também trai o Filho. Jesus, na cruz, clama: "Pai, porque me abandonaste?". A dor da traição é total, e ali reside a grande escolha: permanecer no trauma, afundar-se no cinismo, ou transformar essa dor numa nova visão. A ressurreição é a alquimia dessa traição. É o momento em que o Cristo humano se eleva ao Cristo divino, não por ter evitado a dor, mas por a ter atravessado. E então diz: "Pai, obrigado por me teres glorificado". Esta frase encerra o mistério profundo da individuação: aceitar a ferida como via de ascensão.
A traição é portanto um portal. Humilhante, sim. Doloroso, sem dúvida. Mas também criador. É através dela que descobrimos a diferença entre amor e dependência, entre fidelidade e medo, entre promessa e verdade. É ela que nos obriga a crescer, rever valores, reatar com a coragem de viver com olhos abertos.
Olhar a traição com a lente de Hillman é abandonar o moralismo para escutar o simbólico. É perguntar: o que me veio revelar esta dor? A que parte de mim fui infiel? A quem servi com a minha lealdade?
A traição deixa de ser apenas quebra para ser também revelação. Não se trata de celebrá-la, mas de compreendê-la. De perceber o que em nós teve de morrer para que algo maior pudesse nascer. E de aceitar que, em certas encruzilhadas da vida, o mais fiel que podemos ser é ao nosso próprio caminho.
[James Hillman]
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