[at the very bottom of everything]
terça-feira, 30 de dezembro de 2014
terça-feira, 16 de dezembro de 2014
A palavra imediata
Carta de amor:
Um saco contendo:
folhas de chá - deixei de beber chá
palha - porque tenho sede de amor por ti
uma maçã vermelha - ruborizo quando penso em ti
um fruto seco - estou extenuada como o fruto
um pedaço de carvão - o meu coração arde
uma flor - tu és belo
uma pedra - o teu coração será duro como uma pedra?
uma pena de falcão - se eu tivesse asas voaria para ti
[Maria Gabriela Llansol]
A noite abre os meus olhos
Diante da janela iluminada
acredita apenas na duração
do amor.
[José Tolentino Mendonça]
Amo-te como se aprendesse desde não sei que morte
sou eu que te abro pela boca
boca com boca
metido em ti o sôpro até raiar-te a cara,
até que o meu soluço obscuro te cruze toda,
amo-te como se aprendesse desde não sei que morte,
ainda que doa o mundo,
a alegria
[Herberto Helder]
quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
A missão
Não magoes as palavras,
nem lhes queiras mal por isso.
Afivela-te aos sapatos.
Afirma-te num sorriso.
Os teus amigos esperam-te.
Pergunta-lhes onde fica,
se lembram o paraíso.
[Ruy Cinatti]
quinta-feira, 4 de dezembro de 2014
Dos jogos de Inverno
debaixo das nuvens e do néon sei que ainda é noite
tu que dormes sou ainda o teu corpo o teu sonho somente
a cada instante existo um pouco mais um pouco menos conforme o teu
[ medo a tua coragem
o teu amor o teu erro
ainda olhas para mim ainda vês alguém no lugar feito para lembrança e
[
esquecimento
preciso de ser ríspido e veloz como um animal correndo para a
transparência
despede-te da mesquinha certeza o barro frio nas mãos
não grites água! água! ao avistar as paredes a folha
ainda agora começas minúscula letra caída no meio da noite neve
e já te vejo toda vestida de memória orgulhosa da tua crueldade
aclamando a luz a luz quando é noite riscada pelos holofotes das
casernas
[
dos campos
contente da tua alimentação de proteínas talhos e esquartejamentos
e a invenção de um deus à mais certa medida
aqui estás já podes mostrar o mais belo centímetro de corpo
vais a caminho de coisa alguma com o mais belo prémio reservado E este
é um poema de amor a louvável ode à tua chegada
vens atrasada e limpa como compete a uma santidade urbana
falando bom francês para este meu país la sous-france
desta vez nenhum touro mais ou menos agrícola te arrasta para o mar
[ Que fazer
se sem razão nenhuma insisto que tua é a noite
não consigo imaginar o inferno vê-lo contudo é fácil
é esta herança deixada pelos homens Duvido que chegues a tempo de salvá-la
vale-te da minha ignorância para sair enquanto é tempo
enquanto é de noite e o teu destino incerto[António Franco Alexandre]
Hoje uma senhora na rua chamou-me e deu-me um panfleto que dizia:
"Deus... enxugará dos seus olhos todas as lágrimas, e não haverá mais morte, nem haverá mais pranto, nem clamor, nem dor. As coisas anteriores já passaram."
[Revelação (Apocalipse) 21:3, 4, Tradução do Novo Mundo]
Não me pediu dinheiro, não me cobrou nada por isto. E é assim que pequenos milagres se desenham nas nossas vidas.
Não sei se
Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas
[Adília Lopes]
Utiliza-se o destino e o destino sabe a podre
De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração.»
[Carlos de Oliveira]
Ignorâncias
Perdi uma pérola na erva.
Pérola perdida que guarda o seu oculto oriente.
- O amor àquela que amo um dia se perderá:
pérola de orvalho que morre e que fulgura.
*
Formigas vermelhas no bambu vazio, vaso
repleto de essência de rosas -
se a luxúria enche o meu corpo fundo,
apenas minha amada o pode esvaziar.
*
Ouve-se a água abater no coração do coco verde,
e enquanto amadurece, o dúrio guarda os seus segredos.
Eu sei porque te quero nas minhas mãos,
mas tu ignoras porque te queres na minha boca.
[Herberto Helder]
terça-feira, 2 de dezembro de 2014
Dizeres
Este poema
começa com um homem de tronco nu
à sua mesa de trabalho e hiante
a esta hora em que de oriente a ocidente
se acendem lâmpadas trémulas e bárbaras e ferozes
e o mar é o teu nome a esta hora pétala a pétala
em que subirei de avião para ir beijar-te os olhos
e ver no meio do deserto o único
o magnifico devorador de rosas a comer um pão
enquanto do Oceano resta apenas
o silêncio de uma lágrima caindo nos joelhos
de uma criança
Espera-me onde um nome há no Ar escrito com saliva
azul
com raiva azul
com a urina violenta dos amantes
com a sua flor azul à superfície onde crepita a morte
Choverá muito eu sei choverá muito
e não porei uma pedra branca sobre o assunto digo
sobre o temor de terra cada vez mais depressa
cada vez mais depressa
e lento o peixe de plumas de águia letra a letra
dá a volta ao mundo dos teus olhos
enquanto a dentadura cintilante pronuncia o grande
uivo
de oriente a ocidente
Certas palavras muito duras quando a noite cai
não devem ter outra origem sabes tão bem como eu
porque agora a lava das lágrimas ao crepúsculo
são as rosas com que o poeta fala
à multidão em volta do crocodilo o animal repugnante
de costas para a luz contra o grande uivo:
de oriente a ocidente a mesma flor podre o estado
os segredos de estado as razões de estado a segurança
do estado
o terrorismo de estado os crimes contra o estado
e o equilíbrio do terror
de oriente a ocidente meu amor de oriente
a ocidente
Digo não Eu digo não
digo o teu nome que diz não
[António José Forte]
domingo, 23 de novembro de 2014
XIII
Toquei-te
Rija
Como um pero são.
Mordi-te.
E então
Todas as portas
E janelas
Estalaram
Como uma tempestade
Que estoira de repente
E acabei dentro de ti.
[Sebastião de Lorena]
Repetir-me
Daqui a nada é noite e as noites custam, a mim custam, sobretudo quando
os candeeiros da rua se acendem e as árvores e os prédios fronteiros
logo diferentes, quase ninguém na rua, um miúdo com um cão lá ao fundo,
uma tristeza parada na tonalidade do silêncio, estes móveis e estes
retratos que não me ligam nenhuma, os teus passos na escada, tu no
passeio: nem vou à janela olhar, não quero olhar.
Fica comigo só mais um bocadinho, dez minutos, meia hora, sei lá, o
tempo inteiro. Mesmo que não fales. Mesmo que leias a revista do jornal. Mesmo que não me toques. Mesmo como se eu não existisse.
Há alturas, imagina, em que penso que não existo e depois vem a aflição,
o medo, o meu pulso tão rápido, a voz da minha mãe, do fundo da
infância.
[António Lobo Antunes]
[António Lobo Antunes]
sábado, 22 de novembro de 2014
Eu não tenho paciência para as controversas coisas do mundo, eu só quero a minha quietude e a minha verdade
Para outros a aventura, as viagens, o largo
do oceano, Roma a arder e as pirâmides,
as selvas indomáveis, a luz dos desertos,
os templos e o rosto da deusa. Para eles
arranha-céus e cidades, palácios do sonho
contra o tempo, o sorriso de Buda, as torres
de Babel, os aquedutos, a indústria incessante
do homem e seus afãs.
A mim deixai-me a sombra difusa do carvalho,
a luz de certos dias de Outono, a música silenciosa
da neve, seu cair incessante na memória,
deixai-me as certezas na boca em criança, a voz
dos amigos, a voz do rio e desta casa, de certos livros,
poucos, minha mão desenhando, devagar, a curvatura
perfeita das tuas costas.
[Berta Piñán]
quinta-feira, 20 de novembro de 2014
Woke up and for the first time the animals were gone
Um terrível espaço vazio a rodear esta circunferência que é minha vida
domingo, 16 de novembro de 2014
A constelação dos dias
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
─ Temos um talento doloroso e obscuro.
construímos um lugar de silêncio.
De paixão.
[Herberto Helder]
quinta-feira, 13 de novembro de 2014
Protopoema
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou
também os barcos e o céu que os cobre e os
altos choupos que vagarosamente deslizam
sobre a película luminosa dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam
entre duas águas como os apelos
imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que
os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como
um lento e firme pulsar de coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo
em ramo acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se
detém, o meu corpo despido brilha
debaixo do sol, entre o esplendor maior
que acende a superfície das águas.
Aí se undem numa só verdade as
lembranças confusas da memório e o
vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei
e vai pusar calada sobre a proa rigorosa
do barco.
[José Saramago]
Artífice do sonho
À vasta vingança do sentimento
perece o primeiro gesto. Não tens
já onde ocultar o rosto nem
as coisas te pertencem.
[Fernando Luís]
225 days under grass
and you know more than I.
they have long taken your blood,
you are a dry stick in a basket.
is this how it works?
in this room
the hours of love
still make shadows.
when you left
you took almost
everything.
I kneel in the nights
before tigers
that will not let me be.
what you were
will not happen again.
the tigers have found me
and I do not care.
[Charles Bukowski]
sexta-feira, 7 de novembro de 2014
terça-feira, 4 de novembro de 2014
O coração
No deserto,
vi uma criatura nua, brutal,
que de cócoras na terra
tinha o seu próprio coração
nas mãos, e comia...
Disse-lhe: « É bom, amigo?»
«É amargo - respondeu -,
amargo, mas gosto
porque é amargo
e porque é o meu coração.»
[Herberto Helder/ Stephen Crane]
Eu sempre estive
Chegaste
com a tua tesoura de jardineiro
e começaste a cortar:
umas folhas aqui e ali
uns ramos
que não doeram...
Eu estava desprevenida
quando arrancaste a raiz.
[Yvette Centeno]
domingo, 26 de outubro de 2014
Escolher as verdades com que as nossas vidas se hão-de tocar
[Image taken from page 24 of
'Heavenly Promises. A selection of devotional poetry from the writings
of F. W. Faber, George Herbert, John Keble, etc']
Morrendo-se
Éramos jovens: falávamos do âmbarou dos minúsculos veios de sol espessoonde começa o verão; e sabíamoscomo a música sobe às torres do trigo.Sem vocação para a morte, víamos passar os barcos,desatando um a um os nós do silêncio.Pegavas num fruto: eis o espaço ardentede ventre, espaço denso, redondo maduro,dizias; espaço diurno onde o rumordo sangue é um rumor de ave –repara como voa, e poisa nos ombrosda Catarina que não cessam de matar.Sem vocação para a morte, dizíamos.
Também ela, também ela a não tinha.
Na planície branca era uma fonte:
em si trazia um coração
inclinado para a semente do fogo.Morre-se de ter uns olhos de cristal,morre-se de ter um corpo, quando subitamenteuma bala descobre a juventude da nossa carne,acesa até aos lábios.
Catarina, ou José – o que é um nome?Que nome nos impede de morrer,quando se beija a terra devagarou uma criança trazida pela brisa?
[Eugénio de Andrade]
quinta-feira, 23 de outubro de 2014
Mais uma vez deixar as plantas crescer
i remember
how seeing the shape of your mouth
that first time, I kept staring
until my blood turned to rain.
some things take root
in the brain and just don’t
let go.
[t.s. elliot]
Lady Tavistock
Pela casa dos vinte, emprestavas
felizes olhos, os lábios
com a muita estima.
A voz pronta a voar
num assobio deixava
meadas de ar incendiado.
Voltar a ver-te, vou dizer
poucas palavras, estas mãos
indo para não sei onde
murmuram gestos sem recado,
tantos segredos se perdendo então.
[Fernando Luís]
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
XXII
A fronte colada aos vidros como quem vela de mágoa
Céu da noite que já ultrapassei
Planícies minúsculas nas minhas mãos abertas
No seu duplo horizonte inerte indiferente
A fronte colada aos vidros como quem vela de mágoa
Procuro-te para além da espera
Para além de mim mesmo
E já não sei de tanto que te amo
Qual de nós está ausente.
[Paul Éluard]
[Paul Éluard]
terça-feira, 21 de outubro de 2014
Descendo este vale, corro para ninguém
Tu estás ao fundo das imagens. És a água silenciosa que bebo, a lentidão dos meses quentes – e mordes o meu coração com a boca de quem ignora tudo.
[Vasco Gato]
Mas o arrependimento não é só para velhos
Talvez a juventude seja só este perene
ardor dos sentidos sem arrependimento.
[Sandro Penna]
Divisa
Conhecem-me os cavalos e a noite e os desertos
traiçoeiros e a guerra e as feridas e o papel e a pena.
[Herberto Helder]
sábado, 18 de outubro de 2014
Entre o tigre e o eufrates
Ensinas-me a viver?
Deixo-te pegar na minha colecção de cascas
reparto contigo as unhas que guardo no bolso.
As sementes que nos deram
são pastilhas para dormir
e do umbigo adormecidas
crescem-nos fruteiras.
Dou-te de comer.
Anda.
A terra prometida é para os outros.
Para nós é a areia,
uma paisagem que muda com o vento.
[Miryam Reyes]
quarta-feira, 15 de outubro de 2014
O importante é não deixar ir, disse-lhe
Porque não
soube merecer a glória, a mais suave
de me deitar
a teu lado
e que o
sangue a palavra
abolisse a
diferença entre o meu corpo e a minha voz
porque te
perdi
não sei quem
sou
[António Ramos Rosa]
Nosso querido mês de Agosto
o verão
era uma traição à melancolia
ainda que a luz
trabalhasse no olhar
o cantar das correntes
e a saudade leve dos navios
levava-te sempre no bolso
ruas brancas
e uma mão
de sombras roubadas
era a minha dádiva
nesse tempo de incêndios
[gil t. sousa]
Preciso de ver-te inteiro para que os meus dias não quebrem
Choro quando o sol se põe porque
ele te esconde da minha vista e porque não sei entender-me com os seus rivais
nocturnos. Embora ele esteja baixo e agora sem febre, é impossível contrariar o
seu declínio, suspender a sua desfolhagem, arrancar ainda algum desejo à sua
desfolhagem, arrancar ainda algum desejo à sua claridade moribunda. A sua
partida funde-te com a sua obscuridade, como a lama do leito se dissolve na
água da torrente para além do entulho das margens destruídas. Dureza e moleza
de origens diferentes têm então efeitos semelhantes. Cesso de receber o hino da
tua palavra; subitamente já não te vejo inteira ao meu lado; não é o fuso
nervoso do teu pulso que eu seguro na mão, mas o ramo oco de uma qualquer
árvore já morta e gasta. Só se dá nome ao arrepio, e a mais nada. É de noite. Os
artifícios que se acendem acham-me cego.
De verdade só chorei uma única
vez. O sol ao desaparecer tinha cortado o teu rosto. A tua cabeça rolara na
fossa do céu e eu já não acreditava no futuro.
Qual é o homem da manhã e qual o
homem das trevas?
[rené char]
Gritando não por socorro mas por alguém
Dos campos que cultivei duas
sementes restaram
O centro
Da pedra e as mãos
Dentro da segunda cultivei a hora
de afastar-me
(Não havia ninguém a quem dizer
Já vou)
Dentro da solidão os espantalhos
(não lhes fora dada
A companhia dos pássaros)
Abri os braços como as vides nos
bardos
Hora após hora (e depois delas)
te esperei
[Daniel Faria]
terça-feira, 14 de outubro de 2014
O tempo esse grande escultor
«Não irei mais longe, Gherardo.
Não te acompanho mais porque o trabalho urge
e eu sou um homem velho. Sou um homem velho, Gherardo.
Às vezes, quando te entregas mais à ternura,
chegas a chamar-me teu pai. Mas eu não tenho filhos.
Nunca encontrei mulher tão bela como as minhas figuras de pedra,
mulher que ficasse horas imóvel sem falar,
como coisa necessária que não precisa de agir para ser,
e nos faz esquecer que o tempo passa porque está sempre presente.
Mulher que se deixe olhar sem sorrir nem corar
porque compreendeu que a beleza é qualquer coisa de grave.
As mulheres de pedra são mais castas que as outras,
e mais fiéis, porém, são estéreis.
Não há fenda por onde se possa introduzir nelas o prazer,
a morte, ou a semente de uma criança,
e por isso elas são menos frágeis.
Por vezes quebram-se e em cada pedaço de mármore
fica contida a sua beleza inteira, como Deus
que está em todas as coisas,
mas nada de estranho entra nelas que dilate o seu coração.
Os seres imperfeitos agitam-se e acasalam-se para se completarem,
mas as coisas só belas são solitárias como a dor humana.
Gherardo, não tenho filhos.
Eu bem sei que a maioria dos homens não tem propriamente um filho:
têm Tito, ou Caio, ou Pedro, e não é a mesma alegria.
Se eu tivesse um filho,
ele não se havia de parecer com a imagem que eu dele formara
antes de existir. Assim também as estátuas que faço
são diferentes daquelas que comecei por sonhar.
Mas Deus permite-se ser conscientemente criador.
Se fosses meu filho, Gherardo, eu não te amaria mais,
mas não teria que perguntar-me porquê.
Toda a minha vida procurei respostas a perguntas
que talvez não tenham resposta e perscrutei o mármore
como se a verdade se encontrasse no coração das pedras,
e espalhei as cores para pintar muralhas
como se se tratasse de fixar acordes sobre um enorme silêncio.
Tudo se cala, sabes, até a nossa alma —
ou então somos nós que não ouvimos.
Assim, tu partes.
Na minha idade já não se dá importância a uma separação,
mesmo que definitiva. Eu bem sei que os seres que amamos e que nos amam mais
se vão separando insensivelmente de nós a cada momento que passa.
É também deste modo que se vão separando de si próprios.
Estás sentado sobre essa pedra e julgas-te ainda aí,
mas o teu ser, voltado para o futuro, não adere mais ao que foi a tua vida,
e a tua ausência já começou. É certo que compreendo
que tudo isto é ilusão, como o resto, e que o futuro não existe.
Os homens que inventaram o tempo,
inventaram por contraste a eternidade, mas a negação do tempo
é tão vã como ele próprio. Não há nem passado nem futuro
mas apenas uma série de presentes sucessivos,
um caminho perpetuamente destruído e continuado
onde todos vamos avançando.
Estás sentado, Gherardo,
mas os teus pés estão assentes no solo
com a inquietação de quem experimenta o caminho.
Estás vestido com trajes do nosso século,
que hão-de parecer feios ou simplesmente estranhos quando o século
tiver passado pois as vestes não são mais que a caricatura do corpo.
Vejo-te nu. Tenho o dom de ver através das roupas o irradiar do corpo,
que é como os santos vêem as almas, segundo penso.
É um suplício quando são feios,
mas é um outro suplício quando são belos,
dessa beleza frágil que a vida e o tempo atacam por todos os lados
e acabarão por tomar-te,
mas neste momento és dono dela e tua será na abóbada da igreja
onde pintei a tua imagem. Mesmo que um dia
o teu espelho te não mostre mais que um retrato deformado
onde não ouses reconhecer-te, existirá sempre noutro sítio
o reflexo imóvel de ti.
E desse modo imobilizarei a tua alma também.
Tu já não me amas.
Se consentes em ouvir-me durante uma hora
é porque somos sempre indulgentes com aqueles que vamos deixar.
Ligaste-me e agora desligas-me.
Não te censuro, Gherardo.
O amor de alguém é um presente tão inesperado e tão pouco merecido
que devemos espantar-nos que não no-lo retirem mais cedo.
Não estou inquieto por aqueles que ainda não conheces,
ao encontro de quem vais e que porventura te esperam:
aquele que eles vão conhecer será diferente daquele
que eu julguei conhecer e creio amar.
Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e,
sendo a arte a única forma de posse verdadeira,
o que importa é recriar um ser e não prendê-lo.
Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas:
vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los.
Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe,
enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela.
Tal como as tuas vestes não são mais que o invólucro do teu corpo,
assim tu também não és mais para mim
do que o invólucro de um outro que extraí de ti e que te vai sobreviver.
Gherardo, tu és agora mais belo que tu mesmo.
Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.»
[Marguerite Yourcenar]
Acima do lugar onde o tempo é um saco de areia
Entra pela boca o vinho,
o amor é pelos olhos,
eis tudo o que sabemos realmente
antes de envelhecer e morrer.
Levo o copo à boca,
olho para ti, e suspiro.
[W. B. Yeats]
segunda-feira, 6 de outubro de 2014
3.
Eu seguro este ramo,
pequeno adorno,
que se desfez ao primeiro olhar,
a penumbra deixa-me ocultado.
Por onde vais
volto num rosto molhado
a seguir o vento, o sul
dos muros onde a teus pés brilha
a serpente e adormece.
Vê, não posso
mentir-te noutro corpo.
[Fernando Luís]
Talvez entendas
Cuidado com as palavras,
mesmo as milagrosas.
Com as milagrosas fazemos o melhor,
apinham-se às vezes como insectos
e não deixam picada mas um beijo.
São tão boas como dedos,
tão de confiança como a pedra
que te serve de assento.
Mas podem ser margaridas e hematomas.
Contudo, estou apaixonada pelas palavras,
são como pombas caindo do tecto,
seis laranjas divinas pousadas no meu colo,
são as árvores, as pernas do verão
e o sol, seu rosto enamorado.
Mas falham-me muitas vezes,
tenho tanto que queria dizer,
tantas histórias, imagens, provérbios.
E não me vêm as palavras certas,
só as erradas, que me dão beijos.
Voo às vezes feita águia,
mas com as asas de um pardal.
Tento, porém, ter cuidado
e tratá-las muito bem.
Palavras e ovos devem manusear-se com cuidado.
Depois de quebradas
não se podem reparar.
[Anne Sexton]
Carta de amor
Um dia destes
vou-te matar
Uma manhã qualquer em que estejas (como de
costume)
a medir o tesão das flores
ali no Jardim de S. Lázaro
um tiro de pistola e ...
Não te vou dar tempo sequer de me fixares o rosto
Podes invocar Safo Cavafy ou S. João da Cruz
todos os poetas celestiais
que ninguém te virá acudir
Comprometidos definitivamente os teus planos de
eternidade
Adeus pois mares de Setembro e dunas de Fão
Um dia destes vou-te matar
Uma certeira bala de pólen
mesmo sobre o coração
[Jorge Sousa Braga]
Outrando-se e metamorfoses
A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva, etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.
[Manoel de Barros]
Na há mão no campo minado que trago comigo
Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.
Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.
[Eugénio de Andrade]
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
Ontem...
Por favor,
respeita o meu silêncio,
o silêncio é a minha melhor arma.
Escutaste as minhas palavras
quando fiquei silencioso?
Sentiste a beleza do que disse
quando não disse nada?
[Nizar Kabanni]
segunda-feira, 8 de setembro de 2014
Antecedentes
Veio do outro lado do mar
pronunciado pelo fogo
e jaz nos jardins suspensos sobre a morte
como um vómito do coração
o nome podre de ninguém
[António José Forte]
sexta-feira, 5 de setembro de 2014
Incapacidades
E se mentir não fosse vil
nem grave sequer, nem tivesse
consequências fatais,
não fosse irremediável
nem cheirasse a pólvora;
e se mentir
não murchasse os jardins
nem congelasse a corrente sagrada
que nos rega os sonhos;
e se mentir não fosse mau, afinal,
mas apenas difícil?
[Andrés Neuman]
terça-feira, 2 de setembro de 2014
Compêndio para uso dos pássaros
Andar à toa é coisa de ave.
Meu avô andava à toa.
Não prestava pra quase nunca.
Mas sabia o nome dos ventos
E todos os assobios para chamar passarinhos.
Certas pombas tomavam ele por telhado e passavam
as tardes frequentando seu ombro.
Falava coisas pouco sisudas: que fora escolhido para
ser uma árvore.
Lírios o meditavam.
Meu avô era tomado por leso porque de manhã dava
bom-dia aos sapos, ao sol, às águas.
Só tinha receio de amanhecer normal.
Penso que ele era provedor de poesia como as aves
e os lírios do campo.
[Manoel de Barros]
Os enganos
Quando o homem
entra na mulher,
como a onda mordendo a areia,
uma vez e outra,
e a mulher abre a boca de gozo
e os dentes lhe brilham
como o alfabeto,
então aparece Logos ordenhando uma estrela,
enquanto o homem
dentro da mulher
faz um nó
para nunca mais se separarem
e a mulher
trepa a uma flor
come-lhe o pé
e vem Logos
e solta os rios.
entra na mulher,
como a onda mordendo a areia,
uma vez e outra,
e a mulher abre a boca de gozo
e os dentes lhe brilham
como o alfabeto,
então aparece Logos ordenhando uma estrela,
enquanto o homem
dentro da mulher
faz um nó
para nunca mais se separarem
e a mulher
trepa a uma flor
come-lhe o pé
e vem Logos
e solta os rios.
Este homem,
esta mulher
com a sua fome a dois,
tentaram atravessar
a cortina de Deus,
e conseguiram por um instante,
mas Deus,
na sua infinita perversidade,
desfaz o nó.
[Anne Sexton]
Se eu redimensionar o que existe para saber adormecer
Não sei se te disse,
a minha mãe é baixinha
e tem de pôr-se em bicos de pés
para me dar beijos.
Há uns anos eu é que me empinava,
suponho, para lhe roubar um beijo.
Passamos a vida
a esticar-nos e a agachar-nos
para buscar a medida exacta
para podermos amar-nos.
[Begonã Abad]
segunda-feira, 1 de setembro de 2014
Algures na solidão tu me comoves com teus olhos feridos de mundo
29 março - quinta / 1984
monótonos dias atravessados de mar e barcos
monótonos dias inclinados em arco-íris
da minha varanda até às nuvens, chumbo
da tempestade - aves que regressam
apressadas pousam na praia suja de alcatrão
irremediavelmente perdida a brancura das areias
monótonos dias sujos mais sujos os que hão-de vir
brisa que me fustiga os dedos tamborilando
algures na solidão…
o vómito de ser espectador deste oceano
Porque será que não me mostras
o que se passa no teu fundo?
[al berto]
Se queres saber
Deixo-te o menos sombrio silêncio,
as gavetas arrumadas,
o chá no armário azul
da cozinha.
Para mim posso dizer mentiras
e deixas as coisas lembradas.
Poder mover-me onde não estás,
afastar algumas mágoas
evoca a primeira ausência
de raízes. O cansaço, o sarro
dos espíritos,
o violento olhar no verão,
os muros iluminados, lentas
todas estas coisas
sobem no esquecimento. E
irrompem ao contágio doutro corpo.
[Fernando Luís]
quinta-feira, 28 de agosto de 2014
Ao que virar
Não sei para que lado da noite me hei-de virar
onde esconder de ti o rio de fogo das lágrimas
quase a transbordar e acendo mais um cigarro
e falo atabalhoadamente de um futuro qualquer
e suspiro de alívio porque não ouves o que digo
ou se calhar também não sabes onde te esconderes
esperamos que se ilumine o lado certo da noite
[Carlos Alberto Machado]
sexta-feira, 22 de agosto de 2014
Recordar as folhas de papel que nos caíram ao chão e muito levemente pisamos
silêncio
eu ato-me ao silêncio
eu atei-me ao silêncio
e deixo-me ir
deixo-me beber
deixo-me dizer
apunhalada pela ausência
pela espera infausta
hei-de renascer para
brincadeiras terríveis
e depois lembrar tudo
[Alejandra Pizarnik]
Vertigens do lado de baixo
Assediados pela fome, pelos apagões, pela desvalorização dos salários e pela paralisia dos transportes - entre muitos outros males - Ana e eu vivemos um período de êxtase.
A nossa magreza, potenciada por longas deslocações que fazíamos nas bicicletas chinesas compradas nos nossos centros de trabalho, fez de nós seres quase etéreos, uma nova espécie de mutantes, capazes não obstante de aplicar as últimas energias a fazer amor, a conversar horas e horas e a ler como condenados - Ana poesia, eu, depois de muito tempo de privação, romance novamente.
Foram anos quase irreais, vividos num país lento e escuro, sempre tórrido, a desmoronar-se diariamente, mas sem cair nas cavernas da comunidade primitiva que nos espreitava.
Mas anos também em que nem a mais desoladora escassez conseguia vencer o júbilo que nos dava a mim e a Ana vivermos um com o outro, como náufragos que se amarram um ao outro para se salvarem juntos ou perecerem em companhia.
[Leonardo Padura]
quinta-feira, 14 de agosto de 2014
O infinito
Desde aí o salgueiro ficou sendo um lugar
de peregrinação.
Mas só eleitos capazes de sair voando
de uma aula poderiam ver os dois
corpos deitados, e até hoje ninguém
os viu, embora lá estejam movendo-se
infinitamente.
Por isso a história começa sem começar
e acabar sem acabar.
Como qualquer coisa que se parecesse
muito com o infinito.
[José Saramago]
Infestada de dedos a memória a povoar-nos
[...] uma profunda e melancólica intimidade com a casa, o quintal, a recordação dos mortos.
[José Régio]
sábado, 9 de agosto de 2014
O sal nos beiços
Há manhãs em que a poeira do mar se mistura à poeira azul do céu.
Um hálito fresco e húmido, uma exalação viva e salgada, vem do largo e das profundas – de toda essa constante agitação, que nos dá um sentimento de vida ilimitada.
Sai dos farrapos da névoa, dos laivos onde bóiam espumas, dos redemoinhos lívidos de cólera.
A esta hora o dia está de chumbo.
No horizonte a claridade debate-se para irromper, e só ilumina uma parte do mar em fusão.
Não se vê ainda a costa.
A névoa flutua em farrapos, e de repente, lá do fundo uma espessa fumarada cresce sobre a terra.
Só muito longe uma nódoa azul esparralhada flutua à superfície das águas...
Os barcos formam circulo para além da baía, entre as Berlengas e a costa: sete, oito, dez, de vela triangular, que se preparam para erguer a armação da sardinha – uma grande rede com um saco – o copo.
A sardinha, ao encontrar no seu caminho a rede, deriva para o saco, tirando-a os pescadores com a xalavara para dentro dos barcos.
É uma onda de prata que sai da tinta azul.
Cheira a algas e a mar vivo.
Impregna-me e trespassa-me.
Deixa-me sal nos beiços.
[Raul Brandão]
XVII
Anónimo e cego
Apenas toca
E ninguém lhe diz nada.
Chove por cima dele.
E a única música que sabia
Fica encharcada.
[Sebastião de Lorena]
domingo, 27 de julho de 2014
Breve anotação
Sentada calmamente sem coisa alguma fazer,
aparece a primavera, e cresce a erva.
[Herberto Helder]
My mother asleep
remembering my mother
at a theatre in Athens
thirty
thirty-five years ago
a revue by Theodorakis
those great songs
she fell asleep
in the chair beside mine
in the open-air theatre
she had arrived that day
from Montreal
and the play started
close to midnight
and she slept through
the mandolins
the climbing harmonies
and the great songs
I was young
I hadn’t had my children
I didn’t know how far away
your love could be
I didn’t know how
tired you could get
[Leonard Cohen]
sábado, 12 de julho de 2014
Meu amigo
Depois de tudo, no vazio
da manhã inabitável,
ajuda-me a negar
este remorso:
eu só queria uma canção
que não morresse
e a hipótese de um poema
que não fosse
o lugar onde me encontro
uma vez mais,
sem desculpa, sem remédio,
diante de mim mesmo.
[Rui Pires Cabral]
Lembranças
I don’t remember
lighting this cigarette
and i don’t remember
if i’m here alone
or waiting for someone.
[Leonard Cohen]
A origem
Quando à noite, sozinha no quarto, relembrava o rapaz, eram precisamente as enfadonhas tardes de leitura que recordava com mais ternura, como uma mãe que se enternece sobretudo com os disparates de um filho querido. Esta maneira de pensar é terrivelmente feminina: assim como uma mulher superior, apaixonada por um homem vulgar, acha graça e encanto às idiotices e vulgaridades desse homem, também Catarina, apaixonada por aquele adolescente semicaótico e desconhecido, descobria prazer nas longas horas em que, constrangida, ouvia falar de assuntos que para ela não tinham realidade.
[Graça Pina de Morais]
quarta-feira, 9 de julho de 2014
Clarear
e eu esperasse o tempo bastante
tu passarias aqui
claro passariam muitas outras
antes de ti
exibindo aqueles traços grotescos
que não são os teus
mas um dia passarias
nem que fosse no fim
para encontrar meus ossos
ou então morríamos ambos
eu esperava-te na eternidade
e tu passavas na eternidade
[César Fernández Moreno]
terça-feira, 8 de julho de 2014
Dentro dos quartos vazios
A correspondência apaixonada de Kafka:
Como eu te amo (e portanto eu amo-te, sua tola, tal como o mar ama um minúsculo seixo no seu fundo, é exactamente assim que te cubro com o meu amor - e oxalá seja também um seixo ao teu lado, se o céu o permitir), amo o mundo inteiro, a que pertence também o ombro esquerdo, não primeiro era o ombro direito e, por isso, beijo-o quando isso me dá prazer (e tu tens a amabilidade de despir aí a blusa), o ombro esquerdo está também incluído e o teu rosto debaixo de mim no bosque e o repousar no teu peito quase desnudado. E por isso tens razão quando dizes que já fomos um único ser, e não tenho nenhum medo disso, pelo contrário, é a minha única felicidade e o meu único orgulho e não o restrinjo de modo nenhum ao bosque.”
Ou o amor amolgado de Al Berto:
Tudo vem ao chamamento. Penso mar, e o mar enche-me a alma e as mãos. Balbucio cal, e na pele do tempo cresce uma casa onde não viverei, ergue-se uma cidade de melancolia na incerteza dos punhos, e nela nos ferimos.
Digo sol, e quase cego consigo tocar-lhe. Só por ti clamo, e não te acendes, nem regressas, e me queimas.
Como eu te amo (e portanto eu amo-te, sua tola, tal como o mar ama um minúsculo seixo no seu fundo, é exactamente assim que te cubro com o meu amor - e oxalá seja também um seixo ao teu lado, se o céu o permitir), amo o mundo inteiro, a que pertence também o ombro esquerdo, não primeiro era o ombro direito e, por isso, beijo-o quando isso me dá prazer (e tu tens a amabilidade de despir aí a blusa), o ombro esquerdo está também incluído e o teu rosto debaixo de mim no bosque e o repousar no teu peito quase desnudado. E por isso tens razão quando dizes que já fomos um único ser, e não tenho nenhum medo disso, pelo contrário, é a minha única felicidade e o meu único orgulho e não o restrinjo de modo nenhum ao bosque.”
Ou o amor amolgado de Al Berto:
Tudo vem ao chamamento. Penso mar, e o mar enche-me a alma e as mãos. Balbucio cal, e na pele do tempo cresce uma casa onde não viverei, ergue-se uma cidade de melancolia na incerteza dos punhos, e nela nos ferimos.
Digo sol, e quase cego consigo tocar-lhe. Só por ti clamo, e não te acendes, nem regressas, e me queimas.
sábado, 5 de julho de 2014
Disparos
I feel as if I am an ad
for the sale of a haunted house:
18 rooms
$37,000
I’m yours
ghosts and all.
[Richard Brautigan]
As idas, talvez.
"Teresa, minha querida Teresa, parece que estás a afastar-te de mim. Para onde queres ir? Sonhas todas as noites com a morte, como se quisesses mesmo ir-te embora... "
[Milan Kundera]
quinta-feira, 3 de julho de 2014
Confidências a meio gás
Mas eu nunca sei o que fazer das pessoas ou das coisas de que eu gosto, elas chegam a me pesar, desde pequena.
(...)
Nunca penetrei no meu coração.
[Clarice Lispector]
VI
Nos dias revelados, na posse do que dita
o pó e as vigílias, nessa lenta
profusão de imagens e de rostos
traídos, roídos de beleza
—um dorso descomposto, deitado
sob a treva. E a cabeça
inclinada
cada vez mais no seu lençol.
[Nuno Guimarães]
terça-feira, 1 de julho de 2014
Alcoolizei os sentidos, afinal o resto é só pó
Quando muito era o teu corpo
o que a ti me prendia
e não algo mais abstracto.
Quando muito
imaginei tudo o resto.
[Miriam Reyes]
sábado, 28 de junho de 2014
Quando não vão longe
QUANDO OS SONHOS NÃO VÃO LONGE, correm até à infância e voltam brancos, por grandes alamedas de tristeza e de bruma, a alturas que o olhar não toca, lá onde tu estás e eu não chego. Queria acariciar os teus cabelos mortos, deixar cair entre os nossos espaços o tempo cheio de espaços antes da escuridão acabar de roer a forma da tua sombra.
Quando há uma cama demasiado larga às cinco e dez da manhã: lágrimas, lágrimas - lágrimas. Quando se ouvem passos e não são os teus passos, quando o silêncio não é a pausa da tua respiração, quando não há essa força e esse fogo, essa paz do corpo que torna invulnerável - oh, é muito simples: o pensamento pára
tem que parar
pára
Quando as urtigas nascem por toda a parte, queimam, quando os pântanos alastram e as areias movediças, e a tua mão não está lá, a mão cujos dedos eu conhecia como se conhece um filho, a mão-rocha e a mão-mulher, a mão-sol, a mão-filipêndula batida pelo vento, mas enfrentando-o - é-se como o veado ferido que agoniza em silêncio.
O que vem depois, vem como o sanfue depois de um corte fundo, não pára, mas falta-nos metade das nossas veias, metade dos nossos nervos, metade da nossa pele esfolada, metade do nosso coração gelado. Estou meio cego, perdi metade da minha idade. Falta a sombra dos teus cabelos, a raiz dos teus dentes, o meu abismo debaixo de água.
[Ernesto Sampaio]
Em ti
Aos milhares voam os pombos,
um apenas vem pousar na minha cerca.
- Eu queria morrer na ponta da tua unha,
queria ser enterrado na palma da tua mão.
[Herberto Helder]
Harriet Griselda
«Era o arquiduque. Ásteres,
lírios, dálias sob os seus bravios
dedos. Um rapaz que se demorasse
neles para cantar.»
[Fernando Luís]
quarta-feira, 25 de junho de 2014
Nuas, as faias
Nuas, as faias nem memória têm
Da prata luarenta que as cobriu
(Que primavera é esta, que ternura
Vem soltar-me das mãos a mão do frio?
[José Saramago]
Pós-guerra
No fundo, bem no fundo, quando irrompia numa frase cruel, não era aos outros que dilacerava, era a si próprio que se dilacerava, e tão a sério que todos o víamos sangrar.
[Raúl Brandão]
Os olhos que não vêem longe estão no inferno
Nos quartos
das freiras
não há espelhos
Nas igrejas
não há
espelhos
Os espelhos
são o Diabo.
[Adília Lopes]
Estrela
Legenda
para aquela estrela
azul
e fria
que me apontaste
já de madrugada:
amar
é entristecer
sem corrompermos
nada.
[Carlos de Oliveira]
domingo, 22 de junho de 2014
XVIII
Repeti-te até ao infinito
E fiquei vazio
Como um copo de água que se bebe
E a sede continua.
[Sebastião de Lorena]
Invisibilidades
Eu quis que o romantismo fosse uma coisa feita de merda e saísse do cu de algum bicho estupido e enraiveci.
[valter hugo mãe]
As leituras que fazemos dentro de um corpo
e abri a porta que dava para o teu rosto legente.
Não disse nada, a ouvir nos teus olhos
o som da rua que entrava pelas janelas.
Sentei-me nos lugares dispersos do teu silêncio, e esperei
por ele
_ uniu-se a mim como o oxigénio e o hidrógenio
se unem em forma de água,
numa união tão rara, imponderável e banal
como os nossos corpos unidos a ler
[Maria Gabriela Llansol]
Tenho um ventro que desalojei à infamia
Não sou dona de nada
nem muito menos podia sê-lo de alguém.
Tu não devias temer
quando te estrangulo o sexo,
não penso dar-te filhos, nem anéis, nem promessas.
A terra que tenho é nos sapatos.
Minha casa é este corpo a parecer uma mulher,
não preciso de mais paredes e cá dentro
tenho muito espaço:
este deserto negro que tanto te assusta.
[Miriam Reyes]
Amor mudo
Ardendo de amor, as cigarras
cantam: mais belos porém são
os pirilampos, cujo mudo amor
lhes queima o corpo!
[Herberto Helder]
quinta-feira, 19 de junho de 2014
Ah! o tempo e as batalhas
Foi entre as sete e as oito que a sombra dos caixilhos apareceu nos cortinados e eu entrei outra vez no tempo, ao som do despertador. Era do Avô, e quando o Pai mo deu disse dou-te o mausoléu da esperança e do desejo; chega a ser dolorosamente justo que o uses para alcançar o reducto absurdum de toda a experiência humana, que responderá às tuas necessidades individuais tão bem como respondeu às do teu avô ou às do pai dele. Dou-to, não para que te lembres constantemente do tempo, mas para que te possas esquecer dele de vez em quando, sem depois te esfalfares na ânsia de o recuperar. Porque, como ele dizia, nenhuma batalha se pode considerar ganha. Nem sequer travada. O campo de batalha apenas revela ao homem a sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e de loucos.
[William Faulkner]
Nocturno a duas vozes
- Que posso eu fazer
senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?
- Repara como sou jovem,
como nada em mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
pousou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação.
- Não tenhas medo:
nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre de outra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.
- Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que meus dedos têm
para colher na noite.
- Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos
e um rumor de água
vem no vento.
- Tu és a água, a terra, o vento,
a estrela da manhã és tu ainda.
- Cala-te, as palavras doem.
Como dói um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.
Amo-te.
Amo-te para que subas comigo
à mais alta torre,
para que tudo em ti
seja verão, dunas e mar.
[Eugénio de Andrade]
terça-feira, 10 de junho de 2014
Transforma-nos em rima, que a raiva é fraco delírio
Amor, então,
também acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.
[Paulo Leminski]
Blackfriars
Tremiam-lhe os dedos, um resto
de coração vibrava delirado
noutro corpo. Cortado pelo gume
das lágrimas o amor, longa
escadaria sem patamares
ou portas possíveis.
[Fernando Luís]
Os ofícios
Os mitos são sábios e a noite é fértil... Para além de inspiração, só preciso de silêncio e de espaço mental para compor. Mesmo que não componha, posso ficar horas seguidas a olhar para o infinito.
[Bernardo Sassetti]
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