quinta-feira, 13 de novembro de 2014
Protopoema
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou
também os barcos e o céu que os cobre e os
altos choupos que vagarosamente deslizam
sobre a película luminosa dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam
entre duas águas como os apelos
imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que
os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como
um lento e firme pulsar de coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo
em ramo acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se
detém, o meu corpo despido brilha
debaixo do sol, entre o esplendor maior
que acende a superfície das águas.
Aí se undem numa só verdade as
lembranças confusas da memório e o
vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei
e vai pusar calada sobre a proa rigorosa
do barco.
[José Saramago]
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