sexta-feira, 25 de outubro de 2019

É claro que a dor é uma barco à deriva


Many loved before us, I know
that we're not new...
- podia começar assim,
com uma dessas canções
profanas e furibundas
a que se regressa sempre
nos partidos tempos da vida.

Mas não creio que o alento possa voltar
a ser o daquelas manhãs de Junho
em que uma despedida precoce ditou leis
que eu cumpri demasiado bem.
Que tem isso a ver contigo, dirás,
e a resposta cala-se no meu peito,
asfixia lentamente nas sílabas
do teu nome em forma de punhal,
enquanto eu, o próprio, ando por aí
a ver passar os navios que já não passam
e a preparar tabernas disponíveis
para a velhice que virá.
Já não sou, acredita, esse príncipe
de um reino que quis imundo e breve.
E sei agora que as algemas do amor
doem mais quando os pulsos mal abertos
calafetaram a memória numa travessa
sem espera. De pouco serve importunar-te:
és apenas o álibi dilacerante
de um poema que eventualmente terá
alguma coisa a ver comigo, nada
que mereça a pena que aliás nada merece.
E hás-de ter uma vida, uma família, um cão,
como toda a gente tem mesmo que não tenha,
inventando paliativos cheios de calor,
do sossego, que nunca curaram ninguém
da peste real do amor: esta vontade
de beber por mãos alheias o sangue derramado,
suspenso num sorriso em chamas
sobre o qual já tudo foi dito e ainda nada.
Que te protejam, na noite serrada,
as mais frias certezas e a boca da catástrofe
que não beijou nem quis o poema inacabável.

[Manuel de Freitas]

Sem comentários:

Enviar um comentário