quarta-feira, 23 de julho de 2025

A revelação

James Hillman, psicólogo analítico norte-americano, pós-junguiano e fundador da Psicologia Arquetípica, ensina-nos a olhar a traição com os olhos da alma. Ele não pergunta "quem errou?", mas "qual o daimon que se libertou com este acto?" O daimon, segundo a tradição grega e resgatado por Hillman, é o nosso padrão de alma, uma centelha divina que transporta o nosso destino interno. É ele que nos guia silenciosamente desde o nascimento, e por vezes empurra-nos a trair o exterior para sermos fiéis ao interior. Porque por vezes, é preciso trair um voto para ser fiel ao Self. É preciso quebrar uma promessa para se cumprir o destino interior.

O traído atrai a traição porque permanece na inocência do Éden. Espera amor absoluto, fusão garantida, fidelidade eterna. Mas a saída do paraíso é necessária para que o ego se separe do Pai e inicie o caminho da consciência. Toda traição é uma expulsão simbólica do Éden: a perda de uma protecção ilusória para o encontro com a verdade psíquica.
No mito crístico, o Pai também trai o Filho. Jesus, na cruz, clama: "Pai, porque me abandonaste?". A dor da traição é total, e ali reside a grande escolha: permanecer no trauma, afundar-se no cinismo, ou transformar essa dor numa nova visão. A ressurreição é a alquimia dessa traição. É o momento em que o Cristo humano se eleva ao Cristo divino, não por ter evitado a dor, mas por a ter atravessado. E então diz: "Pai, obrigado por me teres glorificado". Esta frase encerra o mistério profundo da individuação: aceitar a ferida como via de ascensão.
A traição é portanto um portal. Humilhante, sim. Doloroso, sem dúvida. Mas também criador. É através dela que descobrimos a diferença entre amor e dependência, entre fidelidade e medo, entre promessa e verdade. É ela que nos obriga a crescer, rever valores, reatar com a coragem de viver com olhos abertos.
Olhar a traição com a lente de Hillman é abandonar o moralismo para escutar o simbólico. É perguntar: o que me veio revelar esta dor? A que parte de mim fui infiel? A quem servi com a minha lealdade?
A traição deixa de ser apenas quebra para ser também revelação. Não se trata de celebrá-la, mas de compreendê-la. De perceber o que em nós teve de morrer para que algo maior pudesse nascer. E de aceitar que, em certas encruzilhadas da vida, o mais fiel que podemos ser é ao nosso próprio caminho.
[James Hillman]

quinta-feira, 17 de julho de 2025

De vires ou um barco contra o vento

 

Falei de ti com as palavras mais limpas,

viajei, sem que soubesses, no teu interior.
Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres,
tropeçavas em mim e eu era uma sombra
ali posta para não reparares em mim.
Andei pelas praças anunciando o teu nome,
chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.
Em tudo o mais usei da parcimónia
a que me forçava aquele ardor exclusivo.
Hoje os versos são para entenderes.
Reparto contigo um óleo inesgotável
que trouxe escondido aceso na minha lâmpada
brilhando sem que soubesses, por tudo o que fazias.

[Fernando Assis Pacheco]

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Mãe

 

Trago-te em mim como uma ferida

que não se fecha em minha fronte.

Nem sempre dói. E não se apouca

ao coração por ela a vida.

Só fico às vezes cego de repente e sinto

sangue na boca.

[Gottfried Benn]

sexta-feira, 30 de maio de 2025

I am less than I used to be, but somehow more than I ever was.




                                                                                [São Tomé 2025]

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Uma ilha, sempre uma ilha


Infelizmente este lugar é demasiado belo para que o deixemos sem um sofrimento intenso. 
O perigo de viver num mundo demasiado bonito. A desagregação "moral" quando abandonamos a corrida e deixamos de ter rivais, porque vivemos fora dos valores correntes. O eu dissolve-se no Paraíso ou em tudo que a ele se assemelhe.
Foi talvez para se salvar que Adão fez o que fez. Temia a ruína pela felicidade.


[Emil Cioran] 

terça-feira, 20 de maio de 2025

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Eu estou cansado, mas não posso parar.

 



                                                            [Samuel Beckett; Fevereiro 2024, São Tomé]

sexta-feira, 25 de abril de 2025

O coração e a dúvida; formas de luz


Suplico-te com a alma em chamas: tem paciência com tudo o que ainda pulsa sem forma no teu coração. Aprende a amar as perguntas — essas estranhas guardiãs do silêncio — como se fossem quartos fechados à chave, ou livros sagrados escritos em línguas que tua alma ainda não aprendeu a pronunciar. 

Não busques as respostas — elas não estão prontas para ti, e tu ainda não estás pronto para elas. Porque o essencial não é saber, é viver. 

Vive agora as tuas perguntas. Caminha com elas. E, um dia, sem perceber, talvez te descubras dentro da resposta — como quem retorna para casa depois de longas estações de ausência.” 


[Rainer Maria Rilke]

Life goes on. People pass along.

  


                        ;Nothing stays the same.



[The Tree of Life]

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Passar a pente fino


Depois das obrigações e do trabalho
a noite consente a ilusão. Agora
queria sair, ser destemido como Marlowe,
entrar num bar, desfrutar da beleza
das mulheres fatais,
gozar o prazer do fumo de múltiplos cigarros,
quem sabe arriscar e, por uma noite
– bem podia ser esta noite –, ter a sorte do meu lado
no póquer incerto das horas tardias. Só depois
regressaria a casa, exausto
mas feliz por me saber perfumado
pelo assombro profundo, maravilhoso, decadente
da madrugada. Decido
porém ficar à secretária, acender
a luz baixa do abat-jour, ler algumas páginas
de Chandler e escrever nas margens
estas palavras – pedras lançadas à água,
círculos que se expandem – cujo mérito principal
é o de mostrar, uma vez mais,
como eu não soube, ou não quis, escolher
viver a minha vida.
[Luís Filipe Parrado]

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Lunário

 - Temos o voo do coração na ponta dos dedos

na garganta ficou-nos um travo acetinado de corpos

um rasto prateado de correrias pela cidade.

[Al Berto]

Aves como tiros


A minha dor é silenciosa e triste 

como a parte da praia onde o mar não chega.


[Fernando Pessoa]



quinta-feira, 3 de abril de 2025

His face my brain

 I

He was all beautiful: as fair

As summer in the silent trees;

As bright as sunshine on the leas;

As gentle as the evening air.

 

His voice was swifter than the lark;

 

Softer than thistle-down his cheek;

His eyes were stars that shyly break

At sundown ere the skies are dark.

 

I found him in a lowly place:

 

He sang clear songs that made me weep:

Long nights he ruled my soul in sleep:

Long days I thought upon his face.


[John Addington Symonds]

terça-feira, 11 de março de 2025

Leitor:

Mesmo que a vida te pese

e não chegues a saber

se o amor é um abrigo

ou um abismo.

[Rui Pires Cabral]

You've hurt me

but I've hurt other people before,

so I guess it's ok


 

[František Drtikol]

segunda-feira, 10 de março de 2025

As time goes by

 «Meu rapaz, você é demasiado violento», disse o director. «Está a enterrar o seu futuro!»

«Não quero ter um futuro, quero ter um presente. Isso parece-me ter mais valor. Só se tem um futuro quando não se tem um presente, e quem tem um presente não se lembra sequer de pensar num futuro».

[Robert Walser]

O que acontece onde tudo acontece


A poesia é onde tudo acontece. Como o amor, o humor, o suicídio e todos os actos fundamentalmente subversivos, a poesia ignora tudo menos a sua própria liberdade e a sua própria verdade. Dizer “liberdade” e “verdade” em referência ao mundo em que vivemos (ou não vivemos) é dizer uma mentira. Só não é mentira quando se atribui estas palavras à poesia: o lugar onde tudo é possível.

Em oposição ao sentimento de exílio, ao sentimento de saudade perpétua, está a terra prometida pelo poema. A cada dia os meus poemas são mais curtos: pequenos fogos para quem se perdeu numa terra estranha. Em poucas linhas, tenho por hábito encontrar os olhos de alguém que conheço à minha espera; coisas reconciliadas, coisas hostis, coisas que produzem incessantemente o desconhecido; e a minha sede perpétua, a minha fome, o meu horror. Daí vem a invocação, a evocação, a conjuração. Em termos de inspiração, a minha crença é completamente ortodoxa, mas isso não me limita de forma alguma. Pelo contrário, permite-me debruçar-me sobre um único poema durante muito tempo. E faço-o de uma forma que lembra, talvez, o gesto de um pintor: Fixo a folha de papel na parede e contemplo-a; mudo palavras, apago linhas. Por vezes, quando apago uma palavra, imagino outra no seu lugar, mas sem saber sequer o seu nome. Depois, enquanto espero por aquela que quero, faço um desenho no espaço vazio que alude a ela. E esse desenho é como um ritual de convocação. (Acrescento que a minha atracção pelo silêncio me permite unir, no espírito, a poesia à pintura; nesse sentido, aquilo a que outros chamariam o momento privilegiado, chamo eu de espaço privilegiado).

[Alejandra Pizarnik]

Ser outra; perigoso e necessário

 

Fazer pelo menos uma vez o que nunca se fez. Seguir, nem que seja um dia, uma hora, um caminho diferente daquele que o caráter nos dispôs.

[Christian Bobin]

sábado, 8 de março de 2025

quinta-feira, 6 de março de 2025

Rivers and roads


                                                Oh rivers 'til I reach you



[Micoló, São Tomé, Fevereiro 2025]

quarta-feira, 5 de março de 2025

Escaleras de metal


Quase tão casta como uma faca,

puro metal de morte.

[sylvia plath]

: Ya no me recuerdo en que desilusión me dejaste de importar

 

Porque viajaste?
Porque a casa estava fria.
Porque viajaste?
Porque é o que sempre fiz entre o crepúsculo e a aurora.
O que vestiste?
Vesti um fato azul, uma camisa branca, uma gravata amarela e
                                                                         meias amarelas.
O que vestiste?
Não me vesti. Um lenço de dor manteve-me quente.
Com quem dormiste?
Dormi com uma mulher diferente em cada noite.
Com quem dormiste?
Dormi sozinho. Dormi sempre sozinho.
Porque me mentes?
Sempre pensei que te dizia a verdade.
Porque me mentes?
Porque a verdade mente como nenhuma outra e eu amo a verdade.
Porque partes?
Porque nada significa já muito para mim.
Porque partes?
Não sei. Nunca soube.
Quanto tempo deverei esperar por ti?
Não esperes por mim. Estou cansado e quero descansar.
Estás cansado e queres descansar?
Sim, estou cansado e quero descansar.
 
 
[Paul Strand]

domingo, 2 de março de 2025

Mais ou menos assim -

“Me has quitado el demonio de la tristeza y el del desaliento; me has quitado esa oscuridad que yo tenía siempre enfrente de mí y me has hecho menos dolorosa la vida. no te amo por nada, sino por eso, porque has sabido ser maravillosa para mí”.

[Cartas de Juan Rulfo a Clara]

sábado, 1 de março de 2025

La donna è mobile qual piuma al vento


                                        ou sempre o coração se torna bravo onde se acha e o encontram]

 


[São Tomé, Fevereiro 2025]

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Em redor e na busca

 Tomo menos milk-shake e levo uma vida diária vazia e agitada. Passo o tempo todo pensando – não raciocinando, não meditando mas pensando, pensando sem parar. E aprendendo, não sei o quê, mas aprendendo. E com a alma mais sossegada (não estou totalmente certa). Sempre quis “jogar alto”, mas parece que estou aprendendo que o jogo alto está numa vida diária pequena, em que uma pessoa se arrisca muito mais profundamente, com ameaças maiores. Com tudo isso, parece que estou perdendo um sentimento de grandeza que não veio nunca de livros nem de influência de pessoas, uma coisa muito minha e que desde pequena deu a tudo, aos meus olhos, uma verdade que não vejo mais com tanta frequência. Disso tudo, restam nervos muito sensíveis e uma predisposição séria para ficar calada. Mas aceito tanto agora. Nem sempre pacificamente, mas a atitude é de aceitar.

[Clarice Lispector]

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Como la cigarra [


Tantas veces me mataron
tantas veces me morí
sin embargo estoy aquí
resucitando.
Gracias doy a la desgracia
y a la mano con puñal
porque me mató tan mal
y seguí cantando.
Tantas veces me borraron
tantas desaparecí
a mi propio entierro fui
sola y llorando.
Hice un nudo en el pañuelo
pero me olvidé después
que no era la última vez
y volví cantando.
Tantas veces te mataron
tantas resucitarás
tantas noches pasarás
desesperando.
A la hora del naufragio
y la de la oscuridad
alguien te rescatará
para ir cantando.
Cantando al sol como la cigarra
después de un año bajo la tierra
igual que sobreviviente
que vuelve de la guerra.

[María Elena Walsh:]