[Roger Fenton]
sábado, 31 de maio de 2014
Estou ausente II
Que a vida te pareça suportável.
Que a culpa não afogue a esperança.
Que não te rendas nunca.
Que o caminho que sigas seja sempre escolhido
entre dois pelo menos.
Que te interesse a vida tanto com tu a ela.
Que não te apanhe o vício
de prolongar as despedidas.
E que o peso da terra seja leve
sobre os teus pobres ossos.
Que a tua recordação ponha lágrimas nos olhos
de quem nunca te disse que te amava.
[Amalia Bautista]
O vento rasga o asfalto
Dias ainda de julho
dobram no esquecimento
isto e não aquilo,
como foi um dia, o pouco
de tudo, o poço e a mão.
Ainda julho, boca e ninguém,
o amor, cinzas
e ao fundo as rosas
já queimadas.
[Fernando Luís]
Manual de civilidade para meninas
Ao despertarem, as meninas já devem ter acabado por completo de se masturbar quando começam as orações.
Se não vos tiverdes masturbado o bastante de manhã, não deveis acabar de o fazer na missa.
Não deveis acompanhar a missa com um exemplar do Gamiani, mormente se for ilustrado.
Nunca deveis arrancar um botão das cuecas do vosso vizinho, na missa, na altura do peditório. Fazei-o antes de entrardes.
«As pessoas que saibam de algum impedimento que obste à realização deste matrimónio são obrigadas a declará-lo», proclama o padre. Trata-se, todavia, duma simples praxe. Não devereis pois erguer-vos a tais palavras a fim de revelardes confidências.
Quando vos encontrais junto duma senhora que se ajoelha arqueando os rins, não lhe pergunteis se essa posição lhe traz à ideia lembranças ternas.
Durante a catequese, se o jovem vigário vos perguntar o que é a luxúria, não lhe respondais, com risinhos, que melhor do que ele o sabeis vós e vossas amigas.
No dia da vossa primeira comunhão, se uma senhora exclamar, ao ver-vos: «Como vai linda! Até parece uma noivinha!», não deveis responder: «Só cá me falta a flor de laranjeira». Uma tal réplica seria considerada atrevida.
Se antes de irdes comungar chupardes um cavalheiro, sobretudo evitai engolir o esperma, pois desse modo deixaríeis de ficar em jejum, como deveis.
Se durante o sermão o pregador tem ar de acreditar na «pureza das raparigas cristãs», eviai rir às gargalhadas. E se à tarde foderdes na igreja de uma aldeia não laveis o cu na pia de água benta. Longe de assim purificardes o vosso pecado, agravá-lo-íeis.
Ao ajoelhardes diante do altar, não convideis em voz baixa a menina que estiver ao vosso lado a deitar-se convosco à tarde.
[Pierre Louÿs]
segunda-feira, 26 de maio de 2014
As florestas e a linguagem esquecida
I want to tell what the forests
were like.
I will have to speak
in a forgotten language.
[W.S. Merwin]
Apesar do tom de elegia...
Temos o inverno à porta. A cidade pressente-o: vai-me cair o céu em cima e o céu agora não é a transparência leve de agosto ou setembro, uma coisa de nada, etérea como os escritores dizem, longe disso, é o peso das nuvens carregado de electricidade, a ameaça quase a desabar. Pressinto-o eu também: vai de facto cair não tarda muito. Basta ver como a cidade se tornou um desenho aguado e fusco a tinta da china. O clarão de barro a cozer extinguiu-se nos telhados, desapareceu a chama trémula dos grãos de areia, que me enchia o quarto toda a tarde, vinda de Montes Claros. E a propósito: os escritores já não chamam etéreo a nada nem ao céu de verão.
Seja como for, hoje rompeu uma ponta de sol e desço à beira-rio. Levo Luciana comigo. Conheço-a ainda mal. Cabelo azulado, um pouco mais claro do que a asa do corvo, voz com o toque da tal rouquidão que excita não há dúvida os homens. Fala de montanhas cobertas de neve, uma fonte para encher a bilha, searas, fruta, o corpo nu na espuma duma corrente. Coisas naturais e ingénuas, o que é, a voz velada dá-lhes a lentidão, o erotismo, dos sonhos mais fundos. Eis o que sei a respeito dela.
Caminhamos entre os plátanos do parque. Inesperadamente, mas da maneira habitual, insidiosa, começo a sentir o desespero que me provoca a presença das mulheres amadas. (Emanação, respiração, neblina e aroma, filtro que eu respiro boca a boca sem me saciar). Chamo-lhe desespero porque não acho outra palavra mas escrevo-a como se desenhasse nesta página um pequeno firmamento de estrelas caligráficas: ternura, língua, fogo, dentes, brevidade. Morde-se a vida, prova-se apenas um instante e, pior ainda, com a sensação antecipada de que a morte, duas mortes, estão metidas no caso. Não me expliquei muito bem. Nem admira. Fantasmas pessoais, intransmissíveis. E agora reparo: onde eu já vou. Luciana por enquanto não passa da imagem vaga disto nas três ou quatro páginas do romance que iniciei anteontem.
Entretanto caem as primeiras gotas. Luciana obriga-me a regressar. Quando a chuva chega o costume é um mês inteiro de água. O rio pouco denso ganha dia a dia corpo, galga bruscamente as margens, rolam na espuma a fruta podre, os bichos arrancados às tocas, a lenha dos madeireiros, as árvores mais fracas a que a torrente mina o chão (a estabilidade). Nos caminhos barrentos, lutando contra o enxurro, os pastores e o gado voltam à serra. A cidade baixa fica inundada, há canoas nas vielas do Terreiro da Erva, esta Veneza de prostitutas ordenadas numa hierarquia instável, onde se começa quase sempre pelo alto da tabela: casas de cem, cinquenta, vinte e dez mil réis. A cheia bate no portal de Santa Cruz, torna a bater, invade a igreja, submerge o túmulo de Afonso o Fundador. E por fim, em torno das colinas enregeladas, há só um lago enorme com choupos, cegonhas, o frémito do frio.
O tempo que demorou a descrição gastámo-lo nós a chegar. Exactamente o mesmo tempo. E então, as gotas esparsas engrossaram, precipitaram-se umas atrás das outras. Desatou a chover. Não confessei ainda que a chuva me fascina, mas é verdade. Desde a infância, quando dobrava as costas contra o peitoril da janela e deixava a água alagar-me a cara ou a bebia com todo o vagar, de olhos fechados. Foi essa mania inocente que perdeu Luciana. Abri a janela, estendi-me para fora e a chuva passou por mim à pressa escorregando-me no rosto, entrou no quarto, caiu como quis nas poucas folhas do rascunho poisadas sobre a mesa diante da vidraça aberta, dissolveu o perfil de Luciana ainda mal esboçado, apagou-lhe a voz rouca, desfez-lhe o cabelo azul, sumiu-a, sem eu dar por nada. Com que facilidade desaparecem as mulheres, as palavras, numa simples mancha de água e tinta. Frágeis, como a cor dos telhados ou a chama dum grão de areia que a chuva apaga.
Horas depois, continuo em frente da janela. Na rua há um pouco de vento e a lâmpada balança, desnivela os telhados, desequilibra as paredes. Não consigo saber se os prédios pombalinos na realidade oscilam ou se a impressão me vem da vidraça embaciada que fechei quando Luciana desapareceu. Deixou de chover (inexplicavelmente aliás) e o luar surgiu, as estrelas também. Para quê, tão tarde?
Apesar deste tom de elegia a vida continua, não é verdade? Tenho de esquecer Luciana e o romance. Pensar noutra mulher, noutro romance.
[Carlos de Oliveira]
Seres tu a tarde a falar muito baixinho
Achei-te sozinha.
Trazias um pássaro
Seguro na mão.
Toquei-te no rosto,
Sorri-te nos olhos
Segui os teus passos
E subimos a tarde
No mesmo silêncio
Em que os deuses se falam.
[Sebastião de Lorena]
Paisagem sem chuva
fervem nos ombros
dos montes
as pedras do silêncio
e isto podia ser o mundo
ou a casa onde a morte
se cansa de mentir
no céu, só os restos
dum incêndio trabalham
esta febre do olhar
toda a tarde
te respiro por entre
as árvores submersas!
estou tão quente
como um fruto
que o sol ferrou
só, só eu
te sei cantar
até seres chuva
[gil t. sousa]
domingo, 25 de maio de 2014
O homem e todo o homem, dirás
É assim que te vejo ao pé de mim, com detritos, escorrências, lama, mas tão grande, tão vivo, tão humano, que, para sintetizar a tua vida, só me servem as palavras com que um espectador ilustre saúda o Hamlet no fim da representação: – Boas-noites, meu príncipe, és homem, o homem e todo o homem!
[Raúl Brandão]
Pequena estrofe de Espelho
Um corpo amei;
um corpo, um rio;
um pequeno tigre de inocência
com lágrimas
esquecidas nos ombros,
gritos
adormecidos nas pernas,
com extensas,
arrefecidas
primaveras nas mãos.
[Eugénio de Andrade]
Foram dele primeiro, mas seriam minhas estas palavras
Desprendeste-te donde estiveste e é em mim que mais me acontece tu estares. Mas nem sempre. Quantos dias se passam sem tu apareceres. E às vezes penso é bom que assim seja para eu aprender a estar só. Mas de outras vezes rompes-me pela vida dentro e eu quase sufoco da tua presença. Ouço-te dizer o meu nome e eu corro ao teu encontro e digo-te vai-te, vai-te embora. Por favor. E eu sinto-me logo tão infeliz. E digo-te não vás. Fica. Para sempre.
Há em mim uma luta entre o desejo de que te esqueça e o de endoidecer contigo.
[Vergílio Ferreira]
Intempérie
Esta mão viva, agora quente e pronta
Para um sincero aperto, se estivesse fria
E no silêncio gélido da tumba,
Viria de tal forma te obsedar os dias
E esfriar-te as noites sonhadoras
Que quererias esgotar o sangue de teu coração
Para que em minhas veias -
Pudesse inda uma vez correr a vida rubra
E tranquila tivesses a consciência:
- Vê-a, aqui está, estendendo-a para ti.
[John Keats]
sábado, 24 de maio de 2014
Onde estar
Passei por Chaves. Distante no tempo, e, próxima, cada vez mais, das grandes insignificâncias da minha vida. A gente começa sempre pelo princípio, mesmo que seja o princípio do fim. E eu comecei naquela terra a ser eu só na vida. Ao reencontrar-me agora acompanhado desse isolamento não sei, afinal, se estava ou não abandonado. Amava tanto, sonhava tanto, sofria tanto, que pergunto a mim próprio como era possível faltar-me o ar a dois passos de casa.
[A. Neves Pinheiro]
X
A frescura nada tem a haver
Com a água ou o vento
Ou a sombra das plantas,
Mas vem de ti,
Quando estás presente.
[Sebastião de Lorena]
Uma luz com um toldo vermelho
Era como estar só. Mas
estar só e feliz.
A varanda envidraçada,
o cheiro do café, um ramo
chamado pelo sono.
Sombras de sol batiam
no chão de madeira velha.
Restos de água da noite
brilhavam nos vidros
os primeiros insectos.
A maresia das aves costeiras
lanceoladas de luz.
Os olhos pousavam à espera
de te voltar a ver.
A varanda envidraçada,
o cheiro do café, um ramo
chamado pelo sono.
Sombras de sol batiam
no chão de madeira velha.
Restos de água da noite
brilhavam nos vidros
os primeiros insectos.
A maresia das aves costeiras
lanceoladas de luz.
Os olhos pousavam à espera
de te voltar a ver.
[Joaquim Manuel Magalhães]
Mas as nossas medidas nem nós as sabemos dizer
Não sei se te disse,
a minha mãe é baixinha
e tem de pôr-se em bicos de pés
para me dar beijos.
Há uns anos eu é que me empinava,
suponho, para lhe roubar um beijo.
Passamos a vida
a esticar-nos e a agachar-nos
para buscar a medida exacta
para podermos amar-nos.
[Begoña Abad]
Soldados
A caserna vazia demora-se na paisagem como um remorso. Os olhos que a
invadem circulam com um ócio canino. As tarimbas esqueléticas,
deprimidas pela ferrugem. Uma ou outra roupa mastigada pelo vento, suada
ainda. Talvez numa parede a alvorada continue a decantar o seu susto.
Talvez tudo possa ser resgatado com suficiente dedicação. A apneia do
entendimento é um outro respirar. Os perfumes do mundo são uma flor que
rebenta no imo alheio.
Pergunta-se: os soldados? E eles semeiam-se com as suas imagens
insuportáveis, com as suas simples palavras cingidas nos punhos ternos.
São eles as minas que povoam a terra, à espera de que um pé lhes finde a
explosão. Minas do avesso. Minas deflagradas à nascença. E a avultada
esperança de já não ter de corroer o tecido da carne, de já não ter de
arremessar pontos finais para o espaço.
Repousa, sufocado coração da juventude, repousa. A guerra foi a porta
que abriste para o relento. À noite, o digladiar-se dos ramos é um
cântico desarmado. E todo o firmamento um sopro de pálpebras.
[Vasco Gato]
Junho
O rapaz dos amores
amansa o coração.
As mãos, já tão próximas,
desfazem-se na penumbra.
Por que roubas destes lábios
punhados de luz para queimar?
O eclipse acerca-se e afunda
o esmalte dos meus olhos.
E deixo-te, varado e áspero,
de arpão em punho, até ao fim.
[Fernando Luís]
terça-feira, 20 de maio de 2014
Resumindo
Era
uma história de amor, em que um homem compra uma casa numa baía, só
para ver acender as luzes, todas as noites, no outro lado da baía, onde a
mulher amada vive com outro homem.
[Personagem de Peter Handke resumindo O Grande Gatsby.]
Ataca-me um Ulisses desconhecido, longínquo, perpétuo
Tinhas
partido e era eu que ficava em casa, à tua espera. Como Penélope, era eu
que te esperava, que mantinha a esperança. Contra o mais elementar
senso comum.
Mas um dia, ao contrário dela, deixei de esperar. Percebi que não
voltarias, que ninguém volta, que o regresso não é possível: nunca
ninguém se banha duas vezes na mesma água de um rio.
Percebi que a minha fidelidade era louca, que a vida me passava ao
lado. O universo estava em movimento e também eu comecei a mover-me.
Percebi que, se voltasses, eu ficaria sentado à tua frente em
silêncio e não poderia comunicar contigo: haveria entre nós a barreira
do tempo.
Porque não é possível alguém voltar ao leito conjugal e fazer amor,
contar o que sucedeu durante os anos de ausência, enquanto uma deusa faz
com que a noite se prolongue e o dia tarde a nascer para termos tempo
de contar o tempo intermédio e tudo voltar a ser como era, desde o
momento em que foi interrompido.
Nada disso era possível, a não ser numa história mal contada.
Tínhamos saído da vida um do outro, cada um tinha agora a sua.
Então assumi que não irias voltar.
Um dia acordei com essa certeza: nunca irias voltar.
E Lisboa desapareceu contigo.
Tarde ferida
Que mar a pique
ou luz,
ausente e quente,
na boca tão intensa
que fere a tarde?
[Eugénio de Andrade]
Primeiro poema do Outono
Mais uma vez é preciso
reaprender o outono –
todos nós regressamos ao teu
inesgotável rosto
Emergem do asfalto aquelas
inacreditáveis crianças
e tudo incorrigivelmente principia
Já na rua se não cruzam
olhos como armas
Recebe-nos de novo o coração
E sabe deus a minha humana mão
[Ruy Belo]
Late night
Trazia um adeus.
A morrer nas mãos a
aura das crateras.
O dia cobria de folhas
os punhos sem miragem o
amargo apelo dos lábios.
Como se perde o fogo
traficado nas memórias
e fica apenas esta pedra
a mover-se no sono,
ramificada,
sob os olhos deixando
as enlaçadas flores e o luar.
[Fernando Luís]
To see you, to feel you
I want to see you.
Know your voice.
Recognize you when you
first come 'round the corner.
Sense your scent when I come
into a room you've just left.
Know the lift of your heel,
the glide of your foot.
Become familiar with the way
you purse your lips
then let them part,
just the slightest bit,
when I lean in to your space
and kiss you.
I want to know the joy
of how you whisper
"more".
[Rumi]
domingo, 18 de maio de 2014
Fixando
Baudelaire sobre Poe:
[...] gosta de movimentar as suas figuras sobre fundos violáceos e esverdeados, em que se revela a fosforescência da decomposição ou o forte cheiro da tempestade.
When your money's gone and you're drunk as hell
e tu,
sempre tu
num prodígio
de luz
a
enlouquecer-me
as sombras[gil t.sousa]
As velas ardem até ao fim
- As velas - diz distraído, quando lhe saltam à vista os restos fumegantes das velas do candelabro, colocado na borda da lareira. - Olha, as velas arderam até ao fim.
- Duas perguntas - diz repentinamente Konrád, numa voz apagada -, disseste que eram duas perguntas. Qual é a outra?...
- A outra?... - responde o general. Inclinam-se um para o outro, como
dois velhos cúmplices que têm medo das sombras da noite e de que as
paredes os ouçam. - A outra pergunta?.... - repete sussurrando. - Mas se
não respondeste à primeira... Olha - diz numa voz muito baixa -, o pai
da Krisztina acusou-me de ter sobrevivido. Queria dizer que tinha
sobrevivido a tudo. Porque uma pessoa não responde só com a sua morte.
Essa é uma boa resposta. Mas responde também, se sobrevive a alguma
coisa. Nós dois, sobrevivemos a uma mulher - diz num tom confidencial. -
Tu, ao te ires embora, eu, ao ficar aqui. Sobrevivemos com cobardia ou
com cegueira, com ressentimento ou com prudência, o facto é que
sobrevivemos.(...) Quem sobrevive ao outro é sempre traidor. Sentíamos
que tínhamos de viver, e não é possível atenuar isso, porque ela é que
morreu. Morreu, porque te foste embora, morreu porque eu fiquei e não me
aproximei dela, morreu porque nós dois, homens, a quem ela pertencia,
fomos mais vis, orgulhosos, barulhentos e silenciosos que o que uma
mulher podia suportar, porque fugimos dela e a traímos, porque lhe
sobrevivemos. Essa é a verdade. Tens de saber isso, enquanto estiveres
em Londres, quando tudo acabar, na última hora, sozinho. Eu também
saberei, nesta casa: e já o sei. Sobreviver a alguém, a quem amámos
tanto (...), a quem estávamos ligados de tal maneira que quase morremos
por isso, é um dos crimes mais misteriosos e inqualificáveis da vida. Os
códigos penais não conhecem esse crime. Mas nós os dois sabemos (...)
nós estamos vivos, e nós os três estávamos ligados duma maneira ou de
outra, na vida e na morte (...) E o que importa tudo aquilo que as
pessoas pensam sobre isso? Nada - diz com simplicidade. - No fim, o
mundo não importa nada. Só importa o que fica nos nossos corações.(...)
Gostava que me dissesses (...) qual é a tua opinião sobre isso? Pensas
também que o significado da vida não seja outro senão a paixão, que um
dia invade o nosso coração, a nossa alma e o nosso corpo, e depois arde
para sempre, até à morte?(...) É assim tão profunda, tão maldosa, tão
grandiosa e desumana a paixão?(...) Essa é a pergunta.(...) Responde, se
sabes responder - diz alto e insistente.
- Porque perguntas? - replica o outro tranquilamente. - Sabes que é assim.
(...)
- Agora estás mais tranquilo? - pergunta a ama.
- Sim - diz o general.
Caminham juntos (...) O general avança lentamente, apoiando-se na
bengala. Percorrem o corredor, cheio de quadros pendurados na parede. A
mancha que indica o lugar do retrato da Krisztina, faz parar o general.
- O quadro - diz - já podes voltar a pô-lo no lugar.
- Sim - responde a ama.
- Não tem importância - diz o general.
- Eu sei.
- Boa noite, Nini.
- Boa noite.
[Sándor Márai]
[Sándor Márai]
Reposicionando a Primavera
As estações do ano, como as províncias do meu país, devem ser diferentes para cada sensibilidade. Um eminente folclorista desenharia um novo mapa pelos costumes e cantares do Povo, eu colocaria no calendário o início da Primavera em Janeiro. Apercebo-me sem saber como nem porquê que foi atirada para detrás das costas toda a nostalgia acumulada em 365 dias do ano, e, com a minha sofreguidão de Primavera, se volta a encher o saco alegrias e tristezas e a ter de fazer de novo uma limpeza ao coração pelo Natal.
[A. Neves Pinheiro]
IV
Eu devia-os ter mandado à merda
A todos
Logo desde o princípio
E agora estaria
Sossegadamente
A comer o meu pãozinho com marmelada
E a contar as sardas
Que tu tens no rabo.
[Sebastião de Lorena]
O ritmo de plástico
Nesse rio,
quedou perplexa: tinham chegado mais algumas palavras. O bico do pássaro não pára de bater.
Ouviu então a voz terrível, sustentada pela nova melodia tocada pelas folhas:
"mas a própria unidade do amor a que afectivamente aspiras não te
ama porque se fragmenta." Pausa. "O que respondes ao que tu lhe pediste,
e ele não deu?!"
A pergunta foi tão certeira que a mulher sentiu-se cair, e ficou
numa espécie de delírio. O urso escondeu o piano, lançando-se a comer
toda a folhagem da cúpula. Decidira brincar com problemas sentimentais.
- Mas é preciso escutar a parte séria da minha brincadeira - disse a Parasceve.
Eu tinha anotado, na minha agenda, um encontro no sábado com um
urso-de-colar que muito estimava, e que fora adiado para a próxima
quinta-feira. Esqueci-me de recomendar-lhe que, entretanto, me mandasse
uma mensagem para o exercício do som e das palavras. Postal que não vai
certamente lembrar-se de mandar-me.
- Eu sei que as regras do amor têm ritmo - imaginei que respondia
Parasceve. - E não são cenas infantis - retorquiu-lhe, limpando com a
língua uma lágrima que lhe deslizava pela face: - Seria um deserto se
ninguém conhecesse esse ritmo.
Sim, seria. Mas o amor é fraco, e logo vacila.
[Maria Gabriela Llansol]
Os pequenos detalhes de alguém de olhos líquidos
Morrerei sem retratos. Nem de mim nem de ti
nem de uma ou outra mão que me tocou o ombro.
(O esforço é um revigorante da memória –
deixemos o assunto por aqui).
Morrerei sem cadastros, sem datas ou saltérios,
com que embalar as noites às crianças do bairro,
e dessas perdas a que mais me doerá
é a caligrafia do teu punho nervoso.
[Miguel Martins]
Estou ausente
Até quando no túnel sem saída,
no bosque feito de espinhos, no poço?
Até quando instalada na esperança
dos que nada esperam?
Até quando perdida em labirintos,
em cidades sem luz, em pesadelos
que não terminam quando acaba o sonho?
Até quando engolindo
névoas espessas, desconcerto, vertigem?
Até quando sem ti?
Até quando com outros?
[Amalia Bautista]
terça-feira, 13 de maio de 2014
32.
Por ora debato-me, por ora sinto o coração opresso, fingindo que não existes, mas há já terror no meu sorriso, e, quando me ouço, ouço-te também os passos.
[Raúl Brandão]
Birds
É natural que haja um pássaro fechado
Em qualquer sítio
À espera que o libertem.
Mas não há tempo.
[Sebastião de Lorena]
segunda-feira, 12 de maio de 2014
Que mal podem as palavras
1
Não é sempre primeiro
o amor. E quando o trazemos
nos bolsos distraídos das mãos
é o voo da manhã.
Não é tudo. Imagina
A devastação.
2
uma alegria profunda nos protege
quero dizer obscura, quero dizer
silenciosa. Sim, sabemos tantos modos
de imitar o fim da pouca vida
que sobra sempre a matéria dos desertos
para errar os amores novos. Que mal
podem as palavras saber de ti.
3
É uma voz sem socorro. Sem lugares
para adormecer, sem destino
estreito destino para o que dizer te possa
do que passa mesmo quando não sinto
pisa mesmo quando não respiro
e fecho os olhos para te ver melhor.
Às palavras nada mais trarei.
4
Esta morte não podemos dormir.
De te perder ou de ter perdido
não estou hoje mais seguro.
Na praça as sombras dos homens
São tão pequenas para o meio-dia.
Crescem com a tarde para o fim
confundem-se de noite para repartir
o coração.
5
Desde que o mês é este
oitavo mês mau para partidas
repito que não mais posso ter
em mim que não seja
tu. Desde que é esta a condição
a do frágil tempo de uma espera
mau para palavras repito
as que procuram saber
mais valeria o repouso
na imagem do amor
a que preserva. Ninguém
vai perguntar o que falta
sempre falta.
6
Da pedra de cada dia formar o rosto
pequeno e com brilho, o perfil sereno
da manhã, o olhar claro à tarde furtando
a cor sobre o longe do mar onde fica
o coração e anoitece.
À medida deste trabalho esperava ou pedia
a magia menor dos versos, a graça de voltar
sobre ser pobre em lembranças de ouro ou rosa
ao lugar em setembro da tua sombra e não achar
razão.
7
Dia seis, de reis
nesta república quase nada passa
o ano sim, o mês, a ocasião
o vento pela praça e por uma sorte estreita
ao abrigo da aragem de janeiro
passa um cão
e um dia assim como outro dia
sem epifania.
8
Da noite se diz
que antiquíssima
igual em tudo é
aos novos navegantes
em tudo propícia
às migrações lentas
do olhar.
9
Antes queriam uma estátua
que lhes dissesse os futuros
da sorte em pequeno mapa achar
certeza. A este fim
observaram os sonhos, seguiram a linha
da melhor mão, o sul das aves.
Cansaram em paciência as ruas
a vontade. De coração nenhum
partiam, dormiam de bruços
pelas horas da luz.
Instante não havia que se pudesse dizer
propício, era pela hora miúda
a pressa das palavras sobre o imóvel mundo
enganos repartindo. O lugar de tudo
ao norte, iam mandá-lo
à memória.
10
Também nós tivemos nas mãos
os cabelos mortos das nossas rainhas.
Os olhos iam para os lados do poente um dia
e outro dia. Víamos a sombra pousar
no ombro descarnado o último dedo
de luz abandonar a resistência da montanha.
Sentada junto às águas do teu rio
não viste nada, a escutar a chuva
da minha noite não posso ver-te.
Posso mostrar-te as memórias
que aprendi, a minha ilha de Circe.
[António Manuel Azevedo]
Os monumentos de Budapeste as suas ruas são o mal que fiz a uma rapariga de olhos grandes
Em Yèvre vi um quadro enorme, muito belo, que ocupava uma parte inteira do atelier. Há quadros que apetece contemplar quando estamos sós, e lembro-me de ter pensado: «Um dia venho cá vê-lo quando não houver mais ninguém...»
[Agustina Bessa Luís]
Acho que nos conhecemos em Estocolmo
Em julho, quando são horas da noite, mas ainda é dia,
Estocolmo é eu a olhar-te ao longe e tu a fazeres algo
sem reparares em mim. Podes estar a fazer as malas e
eu posso estar deitado, sem querer explicar a calma de
Estocolmo, mas apenas a senti-la, como uma película
de luz rente à pele. Estocolmo ajudou-me sempre que
precisei de pensar. Temo não me ter despedido bem
de Estocolmo. A tranquilidade de se possuir algo e
de se acreditar nessa certeza é também Estocolmo.
A constatação desse engano é já outra cidade.
[José Luís Peixoto]
Sim, meu amor
sim meu amor a pirâmide existe
a pirâmide diz muitíssimas coisas
a pirâmide é a arte de bailar em silêncio
e em todo o caso
há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar
[Cesariny]
Pim pam pum
– Tu, se fosses casado, davas o Primo Basílio a ler a tua mulher?
– Lá isso não. Mas não tinha a mais pequena dúvida em o dar à tua.
[Raúl Brandão]
Diários
25-Julho (domingo).
Fui, como vou frequentemente, visitar o Ramos Rosa. Lá estava, com o seu ar escangalhado, sepulto numa imensidão de livros. E queixando-se, como de costume, das suas desgraças físicas. Eu levei, para contrabalançar, as minhas próprias físicas e morais. E sentimo-nos ainda mais aproximados, nesse equilíbrio de calamidades. Agora o que o perturba é a fixação obsessional em frases que lê, palavras que ouve, e uma paralela amnésia do que está para além disso. Mas aí mesmo eu tinha material próprio para equilibrar. Dei-lhe a minha receita: ler outra coisa, ouvir música, vir à varanda tomar sol. Porque o seu ambiente é mefítico com a poeirada dos livros, o acanhamento do espaço para respirar. Ouviu-me, não muito convencido. Veio à porta despedir-se. E lá o deixei, vago, as calças dependuradas dos suspensórios, a palavra lenta e embaraçada. No fundo sentia-me um tanto contente, porque nos meus conselhos dados de alto esquecia um pouco as minhas desgraças de baixo.
[Vergílio Ferreira]
domingo, 11 de maio de 2014
Colorações
João Gilberto contando a Tom Jobim a impressão do seu encontro fugaz com Nat King Cole num corredor da gravadora:
Ele não é preto. É azul!
Longos dias têm cem anos
A solidão, quando é vivida na infância em completa disponibilidade, sem constrangimento, como um estado semelhante ao do primeiro homem e da primeira mulher, tem tendência a tornar-se crónica. Nada mais emocionante do que recriar o tempo infantil da solidão. A biblioteca, com a sua luz vermelha, a poeira que dança num cone de luz, o ruído das madeiras que estalam; o singular prazer de ler Os Miseráveis ou A Dama de Monsoreau, comendo uma maçã ou uma fatia de presunto com pão fresco. O sabor da carne fumada mistura-se ao calor do forno; às vezes até uma brasa apagada cai no dente, como trazida no rescaldo das queimadas. Para mim, o mais belo serão com eruditas sentenças não vale um retiro com algumas iguarias, um pouco de aniz com um romance de Stendhal, e um quarto aqueido com alcatifa vermelha. A solidão sem desprezo, escolha pura, hino do indivíduo, justo himeneu com a sua obra, pequeno reino de poesia de pés curtos, que não anda, não voa, não se ilude com a inspiração sequer.
Imagino Vieira da Silva neste tipo de solidão. Nada de confidencial, ou dramático. O que em geral se vê nos olhos das pessoas raras é a mais comum das fantasias: estar só e descalçar os sapatos. No limite do seu romance neura e belo como tudo, Anna Karenina disse: «Agora só quero estender um pouco as pernas».
[Agustina Bessa Luís]
A arte de te (não) perder
The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.
Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.
Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.
I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.
I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.
--Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.
[Elizabeth Bishop]
sábado, 10 de maio de 2014
As escadas sem degraus
cascando
1
fosse apenas o desespero da
ocasião da
descarga de palavreado
perguntando se não será melhor abortar que ser estéril
as horas tão pesadas depois de te ires embora
começarão sempre a arrastar-se cedo de mais
as garras agarradas às cegas à cama da fome
trazendo à tona os ossos os velhos amores
órbitas vazias cheias em tempos de olhos como os teus
sempre todas perguntando se será melhor cedo de mais do
que nunca
com a fome negra a manchar-lhes as caras
a dizer outra vez nove dias sem nunca flutuar o amado
nem nove meses
nem nove vidas
2
a dizer outra vez
se não me ensinares eu não aprendo
a dizer outra vez que há uma última vez
mesmo para as últimas vezes
últimas vezes em que se implora
últimas vezes em que se ama
em que se sabe e não se sabe em que se finge
uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz
se não me amares eu não serei amado
se eu não te amar eu não amarei
palavras rançosas a revolver outra vez no coração
amor amor amor pancada da velha batedeira
pilando o soro inalterável
das palavras
aterrorizado outra vez
de não amar
de amar e não seres tu
de ser amado e não ser por ti
de saber e não saber e fingir
e fingir
eu e todos os outros que te hão-de amar
se te amarem
3
a não ser que te amem
[samuel beckett]
1
fosse apenas o desespero da
ocasião da
descarga de palavreado
perguntando se não será melhor abortar que ser estéril
as horas tão pesadas depois de te ires embora
começarão sempre a arrastar-se cedo de mais
as garras agarradas às cegas à cama da fome
trazendo à tona os ossos os velhos amores
órbitas vazias cheias em tempos de olhos como os teus
sempre todas perguntando se será melhor cedo de mais do
que nunca
com a fome negra a manchar-lhes as caras
a dizer outra vez nove dias sem nunca flutuar o amado
nem nove meses
nem nove vidas
2
a dizer outra vez
se não me ensinares eu não aprendo
a dizer outra vez que há uma última vez
mesmo para as últimas vezes
últimas vezes em que se implora
últimas vezes em que se ama
em que se sabe e não se sabe em que se finge
uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz
se não me amares eu não serei amado
se eu não te amar eu não amarei
palavras rançosas a revolver outra vez no coração
amor amor amor pancada da velha batedeira
pilando o soro inalterável
das palavras
aterrorizado outra vez
de não amar
de amar e não seres tu
de ser amado e não ser por ti
de saber e não saber e fingir
e fingir
eu e todos os outros que te hão-de amar
se te amarem
3
a não ser que te amem
[samuel beckett]
Revira[voltas]
Tenho um decote pousado no vestido e não sei se voltas,
mas as palavras estão prontas sobre os lábios como
segredos imperfeitos ou gomos de água guardados para o verão.
E, se de noite as repito em surdina, no silêncio
do quarto, antes de adormecer, é como se de repente
as aves tivessem chegado já ao sul e tu voltasses
em busca desses antigos recados levados pelo tempo:
Vamos para casa? O sol adormece nos telhados ao domingo
e há um intenso cheiro a linho derramado nas camas.
Podemos virar os sonhos do avesso, dormir dentro da tarde
e deixar que o tempo se ocupe dos gestos mais pequenos.
Vamos para casa. Deixei um livro partido ao meio no chão
do quarto, estão sozinhos na caixa os retratos antigos
do avô, havia as tuas mãos apertadas com força, aquela
música que costumávamos ouvir no inverno. E eu quero rever
as nuvens recortadas nas janelas vermelhas do crepúsculo;
e quero ir outra vez para casa. Como das outras vezes.
Assim me faço ao sono, noite após noite, desfiando a lenta
meada dos dias para descontar a espera. E, quando as crias
afastarem finalmente as asas da quilha no seu primeiro voo,
por certo estarei ainda aqui, mas poderei dizer que, pelo
menos uma ou outra vez, já mandei os recados, já da minha
boca ouvi estas palavras, voltes ou não voltes
[Maria do Rosário Pedreira]
sexta-feira, 9 de maio de 2014
Memórias
A minha alegria em velho consistiria em ter aqui meu pai para falar com ele. Não é só saudade que sinto: é uma impressão física. Agora é que acharia encanto até às lágrimas em termos a mesma idade, conversarmos ao pé do lume e morrermos ao mesmo tempo...
[Raúl Brandão]
Travar o destino como a um cigarro
Bruscamente recordas-te de que tens um rosto. Os traços que formavam o seu relevo não eram todos traços de desgosto, antigamente. Em direcção a essa paisagem múltipla erguiam-se seres dotados de bondade. Nela, o cansaço não seduzia apenas naufrágios. Nela respirava a solidão dos amantes. Olha. O teu espelho transformou-se em fogo. Insensivelmente, recuperas a consciência da tua idade (que saltara do calendário), desse acréscimo de existência cujos esforços construirão uma ponte. Recua no interior do espelho. Se não consumires a sua austeridade, pelo menos a sua fertilidade não se esgotou.
[rené char]
Enjaulado bicho de vinte olhos
Daqui a pouco te levantarás da melancolia,
essa cama de equívocos onde o corpo se deita
cansado e que acaba por sequestrar o coração.
[Ruy Belo]
Blood ties
fora do tempo
é mais longe do que qualquer espelho
minha ilha
meu incêndio de pedra
sobre a corrente assassina
de me perder
cansa-me de água e de sol
inquieta-me
do segredo das sementes
e do chão tóxico
dos vulcões
em que me deitei
quando a noite me atormentava
de não chegares
quando a madrugada
me matava de partires
[gil t.sousa]
Menos que nada
E resta
detrás do nada um ofegar tão só
perseguido pelas árvores, perseguido pelos
bosques
que sussurram ao ouvido palavras obscenas
dizendo não és homem, és
menos que um sussurro.
[leopoldo maria panero]
terça-feira, 6 de maio de 2014
Carta da árvore triste
escrevo-te enquanto não amanhece
a morte desperta em mim uma planta carnívora
o mundo parece despedaçar-se pelos desertos do delírio
pântano de lodo entre a pele da noite e a manhã
espaço de penumbras e de incertezas
onde podemos perder tudo e nada desejarmos ainda
por isso aproveito o pouco tempo que me sobeja da noite
este vácuo lento este visco dos espelhos
espessa escuridão agarrada à memória debaixo da pele
começa a asfixia o perigo de ter amado
no mais profundo segredo das noites devorávamo-nos
e um barco tremeluzia pelas cortina do quarto
como um presságio
nos objectos e a roupa atirada para cima das cadeiras
revelam-me a pouco e pouco a desolação em que tenho vivido
.
é-me desconhecida a vida fora dos sonhos e dos espelhos
tu brincavas com o sangue
a noite cola-se-me aos gestos
enquanto balbucio com dificuldade esta carta
onde gostaria de deixar explicadas coisas
não consigo
o silêncio é o único cúmplice das palavras que mentem
eu sei
comemos a lucidez do asfalto
mudámos de morada sempre que foi preciso recomeçar
vivíamos como nómadas sem nunca nos habituarmos à cidade
mas nada disto chegou para nos entendermos
o tempo transformou-se num relógio de argila
tudo esqueci dessas derivas
e pelo corpo de nossos desencontros diluíram-se os sonhos
a verdade é que nunca teria conseguido escrever-te
sob o peso da luz do dia
a excessiva claridade amputar-me-ia todo o desejo
cegar-me-ia tentaria cicatrizar as feridas reabertas pela noite
sou frágil planta nocturna e triste
o sol ter-me-ia sido fatal
conduzir-me-ia ao entorpecimento da memória
e eu quero lembrar-me do teu rosto enquanto puder
o pior é que me falta tempo
sinto a manhã cada segundo mais próxima
ameaçadora e cruel
a luz arrastar-me-á para uma espécie de inércia inexplicável
o silêncio será definitivo
o sangue adormece nas veias e o desejo de permanecer
arremessar-me-ia para o esquecimento sem regresso
poderia até projectar um eventual regresso antes de partir
tenho a certeza de que parto para sempre
não haverá regresso nenhum
creio que se tornaria mais fácil escrever-te de longe
na deambulação por algum país cujo nome ainda não me ocorre
num país com sabor a tamarindos rodeados de mar
onde flores mirrassem ao entardecer e devagar
a paixão nascesse durante o sono
um país um pouco maior que este quarto
fingiria escrever-te para te enviar a minha nova morada
poderia assim queimar os dias no desejo de receber noticias
inventaria mesmo desculpas plausíveis
greves dos correios inexistentes terríveis epidemias
catástrofes
e na espera duma carta acabaria por me embebedar
beber muito e esperar
esperar
digo tudo isto mas já não te amo
[al berto]
De ter onde se ir
II
um pássaro
um estudo para teus sonos
um pássaro que toma a forma de tua fragilidade
uma urgência de boca
e altura
*
um pássaro impronunciável
um acorde sustenido na ponta da respiração
dos dedos
se toco teu rosto, amor
e tu dormes
[Mar Becker]
segunda-feira, 5 de maio de 2014
O poço onde por vezes se pernoita
O que é a magia, perguntas
numa casa às escuras.
O que é o nada, perguntas,
saindo de casa.
E o que é um homem saindo do nada
e regressando sozinho a casa.
[leopoldo maría panero]
Oh captain, my captain...
Não me cumpre falar-te, eu sou quem existe para
pensar em ti, quando fico sozinho
ou de noite acordo,
Eu sou quem deve esperar, seguro de voltar a
encontrar-te,
Eu sou quem deve cuidar de te não perder para
sempre.
[Walt Whitman]
Acreditar em circulos
talvez um dia quem sabe o destino
volte a ter novos contornos e nos olhe de frente
e ainda sobre tempo para reaprender a soletrar correctamente
todas as palavras que admitiam ter nascido
do teu corpo da tua voz do sabor da tua boca
tempo para povoar de novos sons os velhos discos de vinil
e sonhar com mundos à espera de serem salvos
pelas nossas palavras
tempo para nos olharmos e encontrarmos
sem remorsos
a maneira de nos perdermos de novo nos caminhos
que levam ao coração absoluto da terra
talvez um dia quem sabe eu volte
a faltar às aulas para esperar por ti
[Alice Vieira]
7
Afinal: um mais um é sempre incompletamente igual a um. Fizemos disto um projecto, mas falhámos. O teu corpo (afinal pouco subtil: a arte do amor aprende-se dificilmente) e o meu corpo (afinal desfeito, «pelo banquete da inteligência», dizias) afastaram-se. Separados por uma crosta de vidro, afirmo-o com a humildade de quem tudo experimentou, e pode julgá-lo, ah mas foram anos de frescor, espanto, caos, sangue, teatro, pânico, bonomia, voo de pássaros, suspensão, indisciplina, escuridade, cristal terrível — foram anos e anos vividos em alguns dias. E sempre um hiato, uma espada entre espáduas queimadas. Procurei, na tua fonte mais funda, a minha identidade — encontrei a sombra de uma sombra.
[Casimiro de Brito]
O nó
de ter esperado tanto
eu risquei, eu rasguei, eu matei luas
nos abismos perversos
dos espelhos
e dancei na poalha
dos cinzéis
até as mãos chorarem sujas
por entre as fendas
dos muros
rasguei-me
na terra e nas árvores
para que da dor que sobrasse
se multiplicassem estátuas de chumbo
de lábios abertos e olhos
gigantes
por onde a escuridão morresse
e deixasse ao uivo dos lobos
a tarefa difícil de murmurar a luz
no coração da terra fria
por entre a água e a pedra
no peito dos pinheiros
por onde rebentavam as manhãs
amenas,
suaves, como eram
as tua mãos no meu rosto
ou a tua voz de abrigo
quando tropeçava naquela linha
onde se esconde o nó
da tristeza
[gil t.sousa]
As aventuras
«Quando os mortos choram, é sinal de que já há melhoras»,
disse solenemente o Corvo.
«Lamento contradizer o meu famoso amigo e colega», disse a Coruja,
«mas, em minha opinião, se os mortos choram é porque
não têm vontade nenhuma de morrer.»
[carlo collodi]
O que diz o rato
Tenho um destino. Nasci
para roer o silêncio – e vou roê-lo
metodicamente
até que um dia se invertam os papéis
e seja o silêncio a roer-me a mim.
[A.M.Pires Cabral]
A uma razão
Um toque do teu dedo no tambor dispara todos os sons e começa
a nova harmonia.
Um passo teu é a sublevação dos novos homens e a sua arrancada.
Viras a cabeça: o novo amor! Voltas a cabeça, - o novo amor!
«Troca os nossos lotes, livra-nos das pragas, a começar pela praga
do tempo», cantam-te estas crianças. «Ergue não importa onde a
substância dos nossos destinos e do nosso arbítrio», imploram-te.
Chegada a todas as horas partida para todos os lados.
[Rimbaud]
domingo, 4 de maio de 2014
V
a conclusão de que não há abismo, e que a infância não
pára de desenvolver-se e crescer,
é um novo princípio de realidade, de morte, de velhice.
eu não deixo de viver no mundo interior e exterior das
metamorfoses flutuantes; é já dia, mas a noite que con-
duz a esperança no pensamento, e sobre si própria, não
acabou.
Não acabou definitivamente;
onde estará, protegendo-se da luz, o sapo que brilha?
Eu tenho a intuição, Aramis, de que os monstros
são as tentativas mais puras do Universo.
«Olha-os, e não os mates.»
[Maria Gabriela Llansol]
Um pássaro num pé só
Que farei de todas as coisas inúteis
Que fui acumulando
A par e passo?
Que farei de ti?
[Sebastião de Lorena]
II
Agora nós subimos
a pirâmide cujo acesso é
uma lâmina
Dá-me a tua mão
A pirâmide está coberta
de inscrições em relevo
Aplico os lábios
não distingo
teu rosto
de tuas pedras
Lanço-me
a noite proclama
oiço a sua voz de pedra
Desmorono
em tua arquitectura
Eu sei
vou caminhando já
ao teu encontro
[Ana Hatherly]
a pirâmide cujo acesso é
uma lâmina
Dá-me a tua mão
A pirâmide está coberta
de inscrições em relevo
Aplico os lábios
não distingo
teu rosto
de tuas pedras
Lanço-me
a noite proclama
oiço a sua voz de pedra
Desmorono
em tua arquitectura
Eu sei
vou caminhando já
ao teu encontro
[Ana Hatherly]
A lua
Há tanta solidão nesse ouro.
A lua das noites não é a lua
do primeiro Adão. Os longos séculos
da vigília humana encheram-na
de antigo pranto. Olha para ela. É o teu espelho.
[Jorge Luís Borges]
Este fresco jardim
Este fresco jardim era teu
Com suas terraças para o mundo.
Eram tuas as cores deste céu
E o pequeno pastor, ao fundo
[Cesariny]
XVII
Hei-de contar aos corações mais belos,
Sonhares azuis há muito começados,
Histórias duma fada que era má...
[Manuel Vila-lobos]
Os sonhos mortos que se parecem com violetas esmagadas
Há uma serenidade consciente da sua força na linha firme daquele perfil. As mãos têm raça e nobreza; o sorriso, ironia e bondade; os olhos... não se examinam: deslumbram. Deve ter vivdo dez vidas numa vida só. Há sonhos mortos, como violetas esmagadas, na pele fina e macerada das pálpebras. Que rastos deixarão na minha vida aqueles passos, silenciosos e seguros, que sabem o caminho, todos os caminhos da terra?
[Florbela Espanca]
Repetir o teu nome uma, duas, três vezes, até não sobrar nada
Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando chegam os astros
para beber na lua
e adormecem os ramos
das frondes ocultas.
E eu sinto-me vazio
de paixão e de música.
Louco relógio cantando
mortas horas antigas.
Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que as estrelas,
mais dolente que a mansa chuva.
Querer-te-ei como então
algum dia? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranquila e pura?
Pudessem meus dedos
desfolhar a lua!
[Frederico García Lorca]
O lugar onde adormecer
Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traz tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei,
tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa.
Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!
[Almada Negreiros]
E na humildade deixo um rasto de sangue
Humildemente teço minhas palavras gratas
sobre a bela ferocidade
da carne, ergo minha taça,
ouço o oculto rumorejar da fonte.
Humildemente dissipo a solidão, aceito vosso apelo de esperma,
mereço a poesia.
─ Humildemente repudio a morte.
Alguns truques de ilusionismo
o acaso encontrei-te encostado a uma esquina
olhar vazio varrendo a multidão, parei
sorri e tu vieste, fomos andando
os ombros tocavam-se, em direcção a casa
pediste-me para tomar um duche, eu deitei-me
ouvi o barulho da água resvalando pelo teu corpo sujo da
cidade e de engates
sujo pelos dias e noites e mais dias que não tive
esperei-te deitado, outro cigarro
e ainda espero
gosto dos corpos que riem, frescos
rasgam-se à ternura nocturna dos dedos, e ao desejo
húmido da boca, que sempre percorre e descobre
tacteio-te de alto a baixo
reconhecendo-te num gemido que também me pertence, no escuro
contaste-me uma improvável aventura de tarzan, ouvia-te
e no silêncio do quarto fulguravam aves que só eu via
sorri ao enumerar os restos que a manhã encontraria pelo
chão
manchas de esperma, ténis esburacados, calças sujíssimas,
blusão cheio de autocolantes, peúgas encortiçadas pelo suor
as cuecas rotas, sujas de merda
e tuas mãos, recordo-me
sobretudo de tuas mãos imensas sobre o peito
teu corpo nu, à beira da cama, no sossegado sono
[al berto]
Não deixeis um grande amor
Aos poucos apercebi-me do modo
desolado incerto quase eventual
com que morava em minha casa
assim ele habitou cidades
desprovidas
ou os portos levantinos a que
se ligava apenas por saber
que nada ali o esperava
assim se reteve nos campos
dos ciganos sem nunca conseguir
ser um deles:
nas suas rixas insanas
nas danças de navalhas
na arte de domar a dor
chegou a ser o melhor
mas era ainda a criança perdida
que protesta inocência
dentro do escuro
não será por muito tempo
assim eu pensava
e pelas falésias já a solidão
dele vinha
não será por muito tempo
assim eu pensava
mas ele sorria e uma a uma
as evidências negava
por isso vos digo
não deixeis o vosso grande amor
refém dos mal-entendidos
do mundo
Metafisicamente
Às vezes isabel quando caía a tarde
falavas-me de deus e do seu céu
mas deus é só um nome.
[Ruy Belo]
sábado, 3 de maio de 2014
Linneu
A minha profissão é dar-lhes nomes.
Tal como o outro, passados os seis dias,
que era bom, e o chamou,
assim, no bom ou mau,
eu dou nomes à vida, digo
esta é a flor das águas, digo
esta é a planta do teu pé.
Apenas digo nomes: tudo existe
muito senhor de si,
tudo existe insolente,
independente.
Não era necessário eu ter nascido.
[Pedro Tamen]
VII
como a vida sem caderneta
como a folha lisa da janela
como a cadela violeta
- ou a violenta cadela?
como estar egípcio e mudado
no salão do navio de espelhos
como nunca ter embarcado
ou só ter embarcado com velhos
como ter-te procurado tanto
que haja qualquer coisa quebrada
como percorrer uma estrada
com memórias a cada canto
como os lábios prendem o copo
como o copo prende a tua mão
como se o nosso louco amor louco
estivesse cheio de razão
e como se a vida fosse o foco
de um baço lento projector
e nós dois ainda fôssemos pouco
para uma tempestade de cor
um ao outro nos fôssemos pouco
meu amor meu amor meu amor
[Cesariny]
As tardes que são só réplicas de antigos verões
Sento-me num banco de cimento:
porque estou tão triste
quando o céu está tão azul?
Meu coração pós-moderno
bate sobre ruínas
[Ana Hatherly]
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