domingo, 23 de novembro de 2014

XIII


Toquei-te
Rija
Como um pero são.

Mordi-te.

E então
Todas as portas
E janelas
Estalaram
Como uma tempestade
Que estoira de repente

E acabei dentro de ti.

[Sebastião de Lorena]

Repetir-me


Daqui a nada é noite e as noites custam, a mim custam, sobretudo quando os candeeiros da rua se acendem e as árvores e os prédios fronteiros logo diferentes, quase ninguém na rua, um miúdo com um cão lá ao fundo, uma tristeza parada na tonalidade do silêncio, estes móveis e estes retratos que não me ligam nenhuma, os teus passos na escada, tu no passeio: nem vou à janela olhar, não quero olhar. 
Fica comigo só mais um bocadinho, dez minutos, meia hora, sei lá, o tempo inteiro. Mesmo que não fales. Mesmo que leias a revista do jornal. Mesmo que não me toques. Mesmo como se eu não existisse. 
Há alturas, imagina, em que penso que não existo e depois vem a aflição, o medo, o meu pulso tão rápido, a voz da minha mãe, do fundo da infância.

[António Lobo Antunes]

Minha montanha gelada



[ I wish my baby was born - Tim Eriksen, Riley Baugus and Tim O'Brien]


sábado, 22 de novembro de 2014

Quando fico triste por serem palavras já ditas estas que vêm, lembradas, doutros poemas velhos




[Jorge de Sena /Aleksandra Waliszewska]

O guarda-rios


É tão difícil guardar um rio
quando ele corre
dentro de nós.


[Jorge de Sousa Braga]

Eu não tenho paciência para as controversas coisas do mundo, eu só quero a minha quietude e a minha verdade



Para outros a aventura, as viagens, o largo
do oceano, Roma a arder e as pirâmides,
as selvas indomáveis, a luz dos desertos,
os templos e o rosto da deusa. Para eles
arranha-céus e cidades, palácios do sonho
contra o tempo, o sorriso de Buda, as torres
de Babel, os aquedutos, a indústria incessante
do homem e seus afãs.

A mim deixai-me a sombra difusa do carvalho,
a luz de certos dias de Outono, a música silenciosa
da neve, seu cair incessante na memória,
deixai-me as certezas na boca em criança, a voz
dos amigos, a voz do rio e desta casa, de certos livros,
poucos, minha mão desenhando, devagar, a curvatura
perfeita das tuas costas.

[Berta Piñán]

Eu estava presa tu pagaste-me a fiança



[Kimama]

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

domingo, 16 de novembro de 2014

A constelação dos dias


Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.

Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
 ─ Temos  um talento doloroso e obscuro.
construímos um lugar de silêncio.

De paixão.


[Herberto Helder]

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Protopoema


Sobre a minha pele navegam barcos, e sou
 também os barcos e o céu que os cobre e os
 altos choupos que vagarosamente deslizam
 sobre a película luminosa dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam
 entre duas águas como os apelos
 imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que
 os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como
 um lento e firme pulsar de coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo
 em ramo acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se
 detém, o meu corpo despido brilha
 debaixo do sol, entre o esplendor maior
 que acende a superfície das águas.
Aí se undem numa só verdade as
 lembranças confusas da memório e o
 vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei
 e vai pusar calada sobre a proa rigorosa
 do barco.

[José Saramago]

Artífice do sonho


À vasta vingança do sentimento
perece o primeiro gesto. Não tens
já onde ocultar o rosto nem
as coisas te pertencem.

[Fernando Luís]

Vergando-te alguém te diz que o sol nasceu de uma ruptura



[Lucyna Kolendo]

225 days under grass


and you know more than I.
they have long taken your blood,
you are a dry stick in a basket.
is this how it works?
in this room
the hours of love
still make shadows.

when you left
you took almost
everything.
I kneel in the nights
before tigers
that will not let me be.

what you were
will not happen again.
the tigers have found me
and I do not care.

[Charles Bukowski]

terça-feira, 4 de novembro de 2014

O coração


No deserto,
vi uma criatura nua, brutal,
que de cócoras na terra
tinha o seu próprio coração
nas mãos, e comia...
Disse-lhe: « É bom, amigo?»
«É amargo - respondeu -,
amargo, mas gosto
porque é amargo
e porque é o meu coração.»

[Herberto Helder/ Stephen Crane]

Os monumentos que em mim não param de erodir



[Great Sphinx]

Eu sempre estive


Chegaste
com a tua tesoura de jardineiro
e começaste a cortar:
umas folhas aqui e ali
uns ramos
que não doeram...
Eu estava desprevenida
quando arrancaste a raiz.


[Yvette Centeno]