terça-feira, 29 de abril de 2014

Fugas, quem nos dirá


A minha desordem empilha-se até ao céu. Os que eu amei existiam pendurados do céu por um elástico. Voltasse eu a cabeça... e já lá não estavam.

[jean cocteau]

domingo, 27 de abril de 2014

Quase, quase, quase

já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase
 
[vasco graça moura]

sábado, 26 de abril de 2014

Mulher ao mar

Aquele que amei tive de deixar no sítio
mesmo onde nunca soube perdoar:
aí persiste observando o rancor
que lhe impede a respiração da pele
até ao dia em que se desfará —
pedaços de lepra contra a consciência.
Pratico com ele a indiferença, exigente
solução de diluir o que não irá mudar.

Aquele que instintivamente toquei
não deu mais satisfações;
imagino-o absorto numa oficina
com um escopro ou um compasso
descrevendo a solidão, satisfeito consigo.
ou no convívio de terceiras pessoas.
Por ele, sem que que tenha esquecido,
disciplinei o corpo a emudecer.

Aquele a quem um instante quis chegar
não fica, antecipa partidas, vai
e volta, vai mais vezes do que volta;
retira as esperanças, logo não desilude:
quando vem traz o coração aberto
e os braços um tanto ocupados
.
Admito com ele ter suspendido
a fraqueza em virtude do acanho.

Aquele a quem não pedi nada
e que invoco às manhãs,
aparece todavia pelas tarde com notícias
e tempo, que estende em desafogo aparente,
às vezes na cama demora quanto quer
e deixa os lábios no meu ombro.
Trato com ele a justiça que suscita
o que reconhecemos e não nos interroga.

[Margarida Vale de Gato]

Suspensos pedras e astros estão - não na esquina do tempo - mas no som que há do outro lado dessa esquina


[little old new things]

A ruína do império, do crespúsculo

E os amores são como os impérios:
desaparecendo a idéia sobre a qual estão construídos,
também eles desaparecem.

[Milan Kundera]

Eu quis-te porque eras cheio de papoilas e ópio



[arvidabystrom]

Os soldados que perdemos


                                                na eterna batalha do coração

[Kimama]

A carne, essa coisa mesmo muito triste


A carne é triste, mas eu leio pouco,
menos ainda do que o meu gato,
que talvez desculpe um dia
o indemonstrável possessivo
que escrevi sem muita convicção.

Pode-se fazer tanta coisa, à noite.
Ouvir por exemplo Bach
— o pai —, tendo por único
cuidado uma atenção distraída
ao gelo que estala no copo
de vidro indonésio. Sim,
não me parece que eu seja,
para já, «politicamente correcto».
— Ou experimentar o amor,
de novo e sempre o amor,
com frias e esgotadas lágrimas
de lume. E, se o amor não
vem (acontece), posso ir dizê-lo
a ninguém, à porta de bares sombrios,
sem esperar sequer um poema.
Porque nem tudo se escreve,
percebe acordando o gato.
Possa ele também não saber,
neste Inverno, que a carne
é mesmo uma coisa muito triste.

[manuel de freitas]

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Uns sonhos que fazem chorar e rir

Ela está de pé nas minhas pálpebras
com os dedos nos meus entrelaçados.
Ela cabe toda em minhas mãos,
ela tem a cor dos meus olhos
e desaparece na minha sombra
como uma pedra sobre o céu.
Tem sempre os olhos abertos
e não me deixa dormir.
Os sonhos dela à luz do dia
fazem os sóis evaporar-se,
fazem-me rir, chorar e rir,
falar sem ter nada a dizer.

[paul éluard]

E de novo


E tu perguntaste
o que de novo eu sofria
e por que de novo te chamava
e que coisas eu queria que acontecessem
no meu desvairado coração.

[Safo]

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Frágil testosterona


Vamos morrer, disse Lidia, mas nao se agarrou ao homem que estava deitado ao seu lado, como devia ser natural, as frágeis mulheres, em geral, são assim, os homens é que, aterrorizados, dizem, não é nada, sossega, já passou, dizem-no sobretudo a si próprios.

Descobrir talvez demasiado tarde


                                                                                                        do que somos feitos

[in Amélie]

E ocorreu-me que eu, a falar, feria os outros, quando lhes dizia "que estava só"


[ le souffle blanc (faraway)]

Das pessoas que são casas


There is no one who
comes here that does not
know this is a true map
of the world, with you there
in the center, makinh home
for us all

[Brian Andreas]

Já então, como hoje, reparava principalmente nas coisas mínimas


 
[Saul Leiter]





quarta-feira, 23 de abril de 2014

Antilírica

bom choro repartido
sem lágrimas nem rosto
aqueça-te o olvido
em que te tenho posto

chora uma vez vá lá
liberto como os demais
chora por tudo, vá,
sem pretensões orquestrais

vês? não há nada a chorar
o que penavas não existe
a esfera é assim: bola ao ar
e muito mais bola que triste

[Cesariny]

País remoto, devastado

                              Isso
que chamamos “amigos”
e às vezes perdemos
porque o repuxo os carrega
sempre mais para o fundo:
para antes das ondas,
onde dormem os peixes;
para depois da memória,
onde morrem duas vezes

– isso desfaz-se
sombra
              que a luz
do farol atravessa.

*

            Isso
que é tábua
de solidão
a que nos
agarramos
quando falta o
chão e,
              náufragos,
sonhamos com terra

– isso é quase um país.

Mas esse país
não existe. Esse país
não presta

[Eduardo Sterzi]

As quartas

Que é quarta-feira, sim, bem sei.
Mas podia ter outro nome,
porque um dia sem ti
é um dia qualquer,
nem o nome merece.
Acho até que devia haver uma vala comum
para os dias em que te não vejo,
amontoá-los ali ao acaso.
Nem por ordem alfabética, nem afectiva,
nem cronológica sequer,
sextas-feiras com terças,
quintas com sábados,
segundas com... 
(bem, as segundas é outra história)
assim, todos a monte,
que se matassem todos uns aos outros.

Que o calendário, sem ti, seja uma sequência interminável.

- Bom dia, é por causa daquele emprego de...
Ponho sempre o teu nome no currículo,
porque o melhor que fiz fi-lo contigo.
Mesmo quando me desfiz como açúcar no café,
fi-lo bem.
Mas nem assim.
Nem tradutor de silêncios,
nem recorde de asfixia,
nem aquela de fazer da língua um prego
e do amor uma colagem
de sorrisos sem dono.

Há mais amor na traseira da ambulância 
do que na minha memória toda.

Ó quarta-feira, o Outono fica-te largo,
pareces tão mal como um Inverno sem chuva.
Estou a atirar-te o fumo para a cara,
a ver se te vais embora,
se te mudas de lugar,
de dia,
de ano.
Até me dói a boca de te olhar sem os olhos,
de te pensar em Abril,
de te perder até no fundo de um bolso qualquer.

Ficavas tão bem naquele vestido,
que noutra pele qualquer só mesmo por engano.
Eu era outro antes de ti, antes do ódio,
no tempo em que a cor dos meus sonhos
era a cor das tuas calcinhas.
E se não as trazias, meu Deus, as humidades
corriam-me pelas valetas até ao mar. 

Porque eu fui margem,
antes de ti,
antes de ser homem.
Não como agora, que vejo o mar e o renego.
Desconfio mesmo que tiveste orgasmo dentro de água
e cada onda é uma lágrima que perco
por não te chorar como é devido,
assim com epitáfio, mais com rosas brancas.

Porque não te ter é como se tivesses morrido,
por mais que teimes em respirar apenas para me contradizer.
Como sempre.

Quarta-feira, no meio do nada,
nem os mais apaixonados marcam encontro num dia assim.
Existes por puro acaso, tu,
como existe a papiroflexia
ou os jogos de mímica.
Vá lá, vamos chatear o próximo,
eu meto-me ao meio e estorvo.
É isso.
Amanhã nem me lembrarei sequer de ti,
depois disso serás apenas uma metáfora insossa do fracasso.
E ontem, bom, ontem eras o futuro,
cor de cinza, como o céu de Dublin
ou o verso livre de um poeta calvo e com espinhas.

E de todas as mulheres do universo
logo fui assinalar-te a ti,
porque tinhas os olhos mais lindos do mundo
e porque nos olhos tinhas o mundo mais lindo.
E dançámos, bem, eu apenas te seguia os passos,
sem te pisar, ao ritmo das tuas pestanas
e do balanço das barcos ancorados no meu peito,
nessas manhãs em que eu apanhava búzios com os dentes,
para te ver sorrir por trás da sombrinha,
assim mais ou menos, a olhar-te para o decote e a pensar,
então se Deus não existe
este milagre é obra de quem?

Ponho-te, ó quarta-feira, uma rodinha vermelha à volta,
como as viúvas fazem aos aniversários,
és um dia assim como de ir ao dentista,
de ouvir canções pimba na fila do super,
de fumar muito, de fumar de mais,
de putas menstruadas
e de princesas sem coroa.
De enterros e folestrias,
de gorjetas de tostão
e de mentiras eternas.

E depois beijámos-nos à saída daquele bar,
contámos as estrelas num charco,
brincámos às prendas com as árvores,
baptizámos um cão abandonado,
discutimos plurais e verbos irregulares,
tivemos quatro filhos com os teus olhos
sem sequer nos mexermos daquele banco do parque.
E dançámos outra vez debaixo de uma nuvem,
enquanto o futuro nos olhava de viés,
com os dedos manchados de orgasmos
e a roupa assoalhada pelo chão.
Um dia incrível esse, sem dúvida,
quarta-feira sim,
mas não uma quarta qualquer.

[Ernesto Pérez Vallejo]

When you leave here


                                                                    dont forget why you came


Há sempre alguém para te salvar




Mil novecentos e noventa e cinco

nesse tempo, deus existia ainda
e tudo quanto era frágil respirava
loucamente


no bar da escola,
as bandas tocavam
para os cleptomaníacos do coração


nas traseiras do ginásio,
treinavam-se beijos à serpente
e cigarros orientais


os rapazes cresciam
com olhos prateados
e duros totens de carne


debaixo das saias das raparigas
havia flores rasgadas
e sonhos de cavalos bravos


forever young, só o vento
— e as revoluções do amor
que beijo a beijo atraiçoávamos


[João de Mancelos]

Os naufrágios

aceitar os dias por instinto
por dentro
um vulcão de papel
a inventar
as horas seguintes

ser tranquilamente uma terra antiga
um lugar de secura
onde adormecidas pérolas
esperam o cavar silencioso
do tempo

e colher no infinito
esse brilho adiado

como se fossem outra vez
os teus olhos








[gil t. sousa]


A nossa morte há-de levar consigo as palavras que dissermos


[Sarah Sudhoff]

Os mosquitos de suburna

Queria dizer-te que não sei
que há qualquer coisa
talvez desperdiçada  talvez não
Tu sentiste-a  disseste que era como
qualquer uma outra coisa que
esqueci
A tarde era  talvez já fosse tarde
e a noite não vinha
─  como sempre
Queria dizer-te mas não sei se agora
me saberás ouvir


[Maria Alberta Menéres]

Os difíceis ofícios

Quando eu era novo errava
errava pelos longos corredores sem sombra
do meu palácio e uivava como o vento
nas florestas. Agora estou aqui, neste
chão arenoso, à espera: há-de vir alguém,
de machado à cintura, para me rachar a cabeça.
Mas eu só ouço a minha respiração arrastada e
às vezes um restolhar entre as pedras.
Cansado da espera e cego, como hei-de
encontrá-lo, a esse único hóspede?


[hans-ulrich treichel]

Guardas coroas de rosas negras, mas o teu coração é feito de pastilha elástica




Quando a noite toca os teus pulsos



Diz-me quanto sou

1. Atei os sentidos à escuridão
parado diante da tua porta
já não pergunto.

2. A montanha segue em silência
os passos
do peregrino.

3. O que buscamos
uns nos outros
é sempre noite.

[José Tolentino Mendonça]

Giving heart to the lonely

A solidão incontornável de Pessoa:

Não tenho ninguém em quem confiar. A minha família não entende nada. Não posso incomodar os amigos com estas coisas. Não tenho realmente verdadeiros amigos íntimos, e mesmo aqueles a quem posso dar esse nome no sentido em que geralmente se emprega essa palavra, não são íntimos no sentido em que eu entendo a intimidade. Sou tímido, e tenho repugnância em dar a conhecer as minhas angústias.

Ou a incontestável fome de Sá Carneiro:

Em face de todas as pessoas que eu sei que deveria estimar (em face de todas as pessoas por quem adivinho ternuras) assalta-me um desejo violento de as morder na boca.

As mulheres fechadas não dizem nada. Esperam



[Bruno Schultz]

Blue-green blues

A nostalgia urbana
dum Miles Davis
retrata Nova York
escura
           húmida
                        soturna

Quando ele toca
há um abafado grito:
as pungentes notas
batem no ouvido

Orfãs da noite
batem na calçada
com seus duros sons
amargurados

É um som que não chama
mas espera
encosta-se
ao brilho das lampadas eléctricas

O tempo
é uma solidão gemida
em longos
arrastados
intervalos

Mergulho no abandono:
why remember at all?

[Ana Hatherly]

terça-feira, 22 de abril de 2014

A devastação de um Agosto que julgamos interminável


You will hear thunder

 You will hear thunder and remember me,
And think: she wanted storms. The rim of the sky will be the colour of hard crimson,
And your heart, as it was then, will be on fire.
That day in Moscow, it will come true,
when, for the last time, I take my leave,
and hasten the heights that I have longed for,
Leaving my shadow still to be with you.

 [ Anna Akhmatova]


As palavras do pai

Olha, meu filho, esta
é a árvore
da vida. Crescerás
com ela. Às vezes
nos seus ombros colherás
lágrimas em lugar
de frutos, mas
é nos ramos mais altos
que o sonho
mora e a liberdade
floresce.


[Albano Martins]

Just another day


[ c rocket]

Que ele é uma máquina de fazer ruínas



Muito timidamente digo-te

A lenta máquina do desamor,
os mecanismos do refluxo,
os corpos que deixam as almofadas,
os lençóis, os beijos,
e de pé frente ao espelho interrogando-se
cada um a si mesmo,
já não olhando-se entre eles,
já não despidos um para o outro,
já não te amo,
meu amor.

[Julio Cortázar]

A vida, essa estuporada

Se eu quisesse, enlouquecia.
Sei uma quantidade de histórias terríveis.
Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio...
Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso.
Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver?
A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caindo sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo...
Tem de se arrumar muito depressa.
Há felizmente o estilo.
Não calcula o que seja?
Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação.
Faço-me entender?
Não?
Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida.

[Herberto Helder]

As sortes



Hei-de falar-te muito baixinho para não espantar o que tens de ave



O que eu talvez saberia se tivesse outro nome

Eu sei que as tulipas são os olhos de todos os aviões perdidos
Eu sei que as cidades são os esqueletos das aves de rapina
Eu sei que os candeeiros ardendo de noite são os pulmões dos peixes-voadores
Eu sei que o mistério é uma dentadura abandonada
Eu sei que a loucura é um braço solitário sorrindo eternamente
Eu sei que os meus olhos são as tuas pernas frementes
Eu sei que os teus cabelos são o meu acendedor de pirilampos
Eu sei que a tua boca é o meu uivo solar
Eu sei que o teu peito e o teu sexo são a minha água profundamente azul
onde se encontram todos os fantasmas já perdidos há séculos.


[Mário-Henrique Leiria]

Não é preciso entrar em pânico



A cicatriz que dedos deixam noutros dedos

Morreste tantas vezes; despedimo-nos
em cada molhe,
em cada cais dos rompimentos,
amor meu, e regressas
com outra cara de flor mal aberta
que eu nem te reconheço, até que apalpo
dentro de mim a antiga cicatriz
em que soletro arduamente o teu nome.

[Rosario Castellanos]

Still looking out

Now that you’ve gone away for five days,
I’ll smoke all the cigarettes I want,
where I want. Mae biscuits and eat them
with jam and fat bacon. Loaf. Indulge
myself. Walk on the beach if I feel
like it. And I feel like it, alone and
thinking about when I was young. The people
then who loved me beyond reason.
And how I loved them above all others.
Except one. I’m saying I’ll do everything
I want here while you’re away!
But there’s one thing I won’t do.
I won’t sleep in our bed without you.
No. It doesn’t please me to do so.
I’ll sleep where I damn well feel like it
- where I sleep best when you’re away
and I can’t hold you the way I do.
On the broken sofa in my study.


[Raymond Carver]

Talvez um grito chegaria, um socorro dito entre dentes



Foste Tu que me Desvendaste o Amor

Querida: estamos sozinhos à mesa nesta noite infinita em que a chuva cai lá fora com um ruido monótono de chôro. Estamos sós nesta noite de saudade e nunca foi maior a nossa companhia, porque cada vez me sinto mais perto dos mortos. Rodeiam-nos, chegam-se para mim e sentam-se ao nosso lume. São legião... Mais perto, que eu faço uma labareda que nos aqueça a todos. A velha mesa da consoada foi-se despovoando com o tempo, mas hoje estão aqui sentadas todas as figuras que conheço desde que me conheço... Tu, toda branca, e que mesmo através do túmulo me transmites sonho; tu, mais longe, mais apagada e sumida; e tu, que vens de volta, e encostas os teus cabelos brancos aos meus cabelos brancos, para me dizeres baixinho: — Menino!—Pois ainda me chamas menino?! — Outro acolá sorri e outro tenta falar... Dois vivos e tantos mortos sentados à roda desta mesa que veio de meu pai, foi de meu avô e pertenceu já a outras gerações desconhecidas, mas que estão aqui também comigo, escutando e sorrindo, enquanto as pinhas se transformam em flores maravilhosas e as vides que plantei se reduzem a cinza!... Nunca estive tão acompanhado como hoje nesta ceia religiosa de fantasmas, numa comunhão de saudade e de lágrimas, e sentindo que cada Natal volvido mais me aproxima dos mortos. Aumenta o silêncio húmido que nos isola do mundo... Dá-me as tuas mãos, querida, e deixa arder o lume, enquanto eu falo baixinho diante da legião que nos escuta, acompanhado pelo ruído de lágrimas que se ouve lá fora.

Um dia destes temos que nos separar, e é natural que seja eu, que sou mais velho, o primeiro a partir... Antes, porém, quero dizer-te que te devo o melhor da vida. Foste tu que me desvendaste o amor que eu desconhecia. A bondade e a ternura, que eu desconhecia. Não exerci talvez nenhuma influência na tua alma — tu apaziguaste-me. O amor era em mim um simples impulso: criaste-o, e pouco a pouco essa força nas tuas mãos se transformou em sentimento religioso.

Olha para os meus cabelos todos brancos... Julgava que o amor ia diminuindo com o tempo — e o meu amor não cessa de aumentar até à morte e para alem da morte. «Na ocasião em que escrevo estas linhas — diz Alfieri nas Memórias — na idade em que já desapareceram de todo as ilusões, sinto que a amo cada vez mais, à medida que o tempo destrói o brilho da sua passageira beleza. Ela tornou melhor, elevou e pacificou o meu coração — e eu ouso dizer a mesma coisa do seu, que sustento e fortifico.»

É certo: cada ano que passa é um laço que nos prende e quanto melhor conheço a tua alma, mais me purifico ao seu contacto. Não só fazes parte do meu ser, mas da minha consciência. Chego às vezes a supor que tu és a minha consciência. Por isso esta separação vai ser dolorosa, ainda que eu creia que nos tornaremos a encontrar noutro mundo melhor. Não decerto para vivermos as horas que passamos juntos à beira do lume, penetrados um do outro e unidos pelo silêncio, mas numa vida superior que antevejo e numa paz mais profunda. Ainda assim tenho pena. Tenho pena das horas monótonas que correm — do tempo que passa — da brasa que se extingue...

Foste o fio que ligou a minha vida desordenada. Há em mim um ser desconhecido que me leva, se não estou de sobreaviso, a acções que detesto. Uma palavra tua me detém. Tenho passado o tempo a comentar-me e poucas almas me interessam como a minha. O que eu amo sobretudo é o diálogo com esse ser esfarrapado. Dêem-me um buraco e papéis e condenem-me à solidão perpétua. É-me indiferente... Isto é, um erro — e tu fizeste-mo sentir. Sem mo dizeres — compreendi que a nossa vida é, principalmente, a vida dos outros... Melhor: compreendi que a ternura era o melhor da vida. O resto não vale nada. Não é por a esmola da velha do Evangelho ser dada com sacrifício que é mais aceita no céu que o oiro do rico — é por ser dada com ternura. O importante é a comunicação de alma para alma. A mão que aperta a nossa mão, o olhar húmido que procura o nosso olhar, o sorriso que nos acolhe, desvendam-nos o mundo. Às vezes é um nada que nos faz reflectir, é um momento, é uma figura que nos entra pela porta dentro e de quem nos sentimos logo irmãos...

Ainda não há muito que passei uma tarde no lagar, com os homens que assentavam os dornões, e achei um grande encanto àquela lide rude. Cheirava a mosto, e o cheiro pareceu-me mais penetrante que das outras vezes. É a quadra do ano em que caem as primeiras chuvas. Sente-se que vem aí o desabar imenso, nas noites que não têem fim —e aquela voz séria que nos faz reflectir. Há já um pique de frio, que sabe bem, e os ratos e as doninhas começam a levar para os buracos as primeiras folhas amarelecidas que caem das árvores. Tudo adivinha o inverno. A porta da adega comunica com a cozinha térrea da nossa pequena lavoura. Debruçada sobre o lar, a mulher deitava um feixe de sarmentos da poda sobre as brasas, e a fogueira lambia as paredes negras que relusem, iluminava os potes de ferro e o berço do filho ao lado do lume, a quem ela ia falando em-quanto fazia o caldo... Este pequeno quadro de interior humilde — o homem que trabalha comigo na mesma vinha, o moço que o ajuda, a mulher e o berço, fizeram cismar... Aproximo-me cada vez mais — outro inverno, ou a ideia da morte? — da vida de todos os dias. Esta época do ano é a que melhor se harmonisa com a minha alma um pouco cansada e triste — já resignada diante do fim. É agora que eu acho mais sabor à vida — quando a sinto fugir-me. Cheira a folhas apodrecidas. As sombras mais frias, à espera de outras sombras geladas e eternas, trespassam-me de humidade. Anuncia-se o grande inverno no pio das aves, na cor das folhas que se arrepiam com a lufada do vento e caem uma a uma com um ruído tão leve como os passos da Morte...

O sentimento da vida humilde inspiraste-mo tu; este e outros de apaziguamento e verdade. Ligaste-me mais aos vivos e aos mortos. Aos que estão sentados ao nosso lado nesta noite sagrada e à legião infinita que tem sofrido no mundo, cumprindo a vida, aos desgraçados e aos humildes, aos pobres de pedir que caminham como dantes pela estrada. A chuva cai fora, com o ruído manso de quem se resigna e aceita a dor... Cheguemo-nos mais para o lar, que eu faço arder uma fogueira que nos aqueça a todos — toros de carvalho duros como ferro que dão uma luz mortiça e um calor persistente; o pinheiro que arde, estala, flameja, numa grande labareda fugaz; as vides que plantei e já me aquecem há dois invernos e as pinhas que gosto de atirar uma a uma ao lume e que se transformam em maravilhosas flores de ouro, cujas pétalas só duram um instante... Cheguem-se todos os que no mundo me deram um bocadinho de ternura!

Tu, primeiro, de quem herdei a sensibilidade e esta paixão pelas árvores e pela água, e de quem sinto as mãos pousadas sobre a cabeça, trespassando-me de ternura; tu, tão velhinha, que me quizeste como a um filho, e vós todas de quem confundo as cabeças brancas. Sinto na mão um dedo nodoso que já não existe e a que a minha mão ainda se apega. Sinto as mãos que toquei durante a vida. Muitas já desapareceram, mas estão aqui entre as minhas — as mãos de meu pai, as mãos de minha mãe, as mãos pequeninas das crianças. Não a mão material — mas as mãos espirituais. As mãos quando a gente as aperta e as tem entre as suas dão-nos o ser inteiro pelo contacto. Destruídas pela morte fica a ternura que nos transmitiram.

Um momento, um só momento, um momento e lágrimas, um único momento para lhes fazer sentir também a minha ternura, redobrada pelos anos, aumentada pela saudade, amplificada pelo conhecimento da vida e da dor!... 
[Raul Brandão]

As tuas palavras são cães à solta mas



Tenho as costas doridas de recordação


[Nadav Kander]

Encontros

A vida dos homens estica e encolhe, enche-se de rugas, pregas no espaço e no tempo, no que pensamos ou sentimos.

Quando uma parte das vidas se encontra com outra, dizemos que lembramos, ou sonhamos, ou revivemos.

Quando se encontra com a vida de outra pessoa, chamamos-lhe coincidência ou sorte.


[Nuno Camarneiro]

Não vão ser precisas mãos

Talvez num dia
em que de mim já nada exista
te lembres de dois braços
que te abraçavam convulsivamente
nessa altura
deixa que os lábios te sangrem
deixa que o sangue te corra pelo peito

e as mãos
essas
abandona-as...


[Mário-Henrique Leiria]

Não se pode deixar voar o que não se volta a apanhar

diz-me,
se me esfregavas
até rasgar-me em fios,
porque ė que nunca passaste os dedos
ao través?
Porque não me prendeste?

[Vanesa Pérez-Sauquillo]

As travessias irreparáveis




Por isso, rio foi o nome que lhe dei


                                                                         E nele o céu mora mais perto.


Algumas cobardias e outras pedras na mão

Como nunca vieste, já não venhas.
O mais rico tesouro é o que se nega.
Ágil veleiro doutros mares, navega
Com as asas que tenhas!
Foge de ti, porque de mim fugiste.
Alarga a solidão que me consome.
E apaga na memória a praia triste
Onde eu pergunto às ondas o teu nome.

[Miguel Torga]

E por isso espero e me abandono




[Akuma Aizawa]

Trocar de nome para trocar de coração

Vou guardar as tuas mãos na paixão que tenho por ti, mas não te posso revelar o meu nome, nem precisas de o saber. Chama-me o que quiseres, dá-me um nome para que possamos amarmo-nos. Aquele que tinha perdi-o no caminho até aqui. Pertence a outra paixão, e já a esqueci. Dá-me tu um nome, para eu poder ficar contigo.

[al berto]

Procurar-te-ei até te encontrar.


                                      Mesmo que só te encontre em corpos.
                                      Onde tu não estás.



  [Herberto Helder / John Stezaker]

The stars fell one by one into his eyes and burnt

[Nicola Samorí]

Ter de te dizer que os passos são lentos

Caminha devagar: desse lado o mar sobe ao coração
Agora entra na casa, repara no silêncio, é quase branco

[Eugénio de Andrade]

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Especificar maleitas

the quivering of the giddinesses
deletes the movement
to breathe

thick words of the thought
the body of the writing
with vein glare

with a piece
from breast a lead
red broken
the anvil stirring up
an undertow
the night inside

one second towards
the escape the refusal
the refuge

a waiting room
long and fine too
the eternity of the quays
to go to seek
at the bottom the fate
of fire

of the strap
the flight

with stones
on the reflection
silence is detached

with the shade of your fingers
they remain to us dreams
of nowhere where all
is

impossible

crawling animals
lapping

unknown knowledge
and naked intimacy
of beings

bleeding
the commissure
open fainding
of gem paradoxical

until the femur

the longest bone
human body

Se conseguires meter 3 balas na cabeça encontrarás a síntese que procuras


O tacto, as ruínas


O que dizer do que ficou

brincávamos a cair nos
braços um do outro, como faziam
as actrizes nos filmes com o marlon
brando, e depois suspirávamos e ríamos
sem saber que habituávamos o coração à
dor. queríamos o amor um pelo outro
sem hesitações, como se a desgraça nos
servisse bem e, a ver filmes, achávamos que
o peito era todo em movimento e não
sabíamos que a vida podia parar um
dia. eu ainda te disse que me doíam os
braços e que, mesmo sendo o rapaz, o
cansaço chegava e instalava-se no meu
poço de medo. tu rias e caías uma e outra
vez à espera de acreditares apenas no que
fosse mais imediato, quando os filmes acabavam,
quando percebíamos que o mundo era
feito de distância e tanto tempo vazio, tu
ficavas muito feminina e abandonada e eu
sofria mais ainda com isso. estavas tão
diferente de mim como se já tivesses
partido e eu fosse apenas um local esquecido
sem significado maior no teu caminho.

[valter hugo mãe]

Nas águas frequentemente tão estagnadas do afecto



[laura makabresku]

Falávamos de culpabilidade


                                           mas ela é um ser monstruoso que abate as árvores na floresta.



Lavagens a seco

Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

[Ana Cristina Cesar]

Uivar

Respirar
o menos possível
nestas cidades
de uma tristeza
sem idade
abrindo o espaço
com os gestos lentos de um náufrago
a caminho
do fundo

A noite sobe-me
na voz
como um lugar
capaz de imaginar
sozinho
o seu cenário
onde o azul
dorme
numa cave
com os cães


[Ernesto Sampaio]

Pain is a flower, pain is flowers blooming all the time



Entreter a solidão, o mar



[rui pires cabral]

The reason I write

When i'm with you
I want to be the kind of hero
I wanted to be
when I was seven years old
a perfect man
who kills

[L.Cohen]

Festa e transmutações

Desdobrei a minha orfandade 
sobre a mesa, como um mapa. 
Desenhei o meu itinerário 
até ao meu lugar ao vento.
Os que chegam não me encontram.
Os que espero não existem.

E bebi licores furiosos
para transmutar os rostos
num anjo, em copos vazios.


[alejandra pizarnik]

Onde eras tu

Dentro do grande túnel digo-te a vida
esta nuvem que vai para o centro da cidade leve e rosada
como a proa de um barco
bateira que me trás os dados e a roleta onde no branco
ou no preto devo jogar
jogando-me contigo
bem-me-quer
malmequer
ou muito ou pouco
ou nada
o que só com as mãos pode ser soletrado
só nos teus olhos nos teus olhos escrito


[Cesariny]

Mas o meu corpo está cheio de névoa








Angústia

Será possível que ela me faça perdoar as minhas ambições sempre esmagadas, - que um bem-estar futuro compense as épocas de indigência, - que um dia de êxito adormeça a vergonha da nossa inabilidade fatal?
(Oh palmas! diamante! - Amor, força! - mais alto que todas as alegrias e glórias! - de todas as maneiras, em todo o lado - demónio, deus, - juventude deste ser; eu!)
Que acidentes de feérie científica e movimentos de fraternidade social sejam encarecidos como restituição progressiva da sinceridade primeira? ...
Mas a Vampira que nos faz gentis ordena que brinquemos com o quenos dá, ou então que sejamos mais contentes.
Rolar nas ferias, no exausto e no mar: nos suplícios, no silêncio das águas e do ar assassinos; nas tortutas que riem na sua mudez atrozmente acapelada.

[Rimbaud]

O infinito tenha piedade de mim, e reze


Madrigal

Agora
onde te despes
é verão:
tudo acolhe
e afaga
o que teu corpo tem
de concha
molhada.

[Eugénio de Andrade]

Ah!, o que eu sou, toda a gente o pode saber, mas o meu coração só a mim pertence





Se não é a boca, é o teu olhar que te acusa

Deixei uma mulher esperando
Encontrei-me com ela tempos depois
disse-me, os teus olhos estão mortos,
que te aconteceu, amor?

[Leonard Cohen]

Oh! mas as incompreensões

Às vezes não posso compreender como outro a pode amar,
ousa amá-la, quando eu a amo de maneira única, profunda, plena,
quando nada conheço, nada sei, nada tenho senão ela.

[Goethe]

Caminhos do espelho

I
E sobretudo olhar com inocência. Como se não se passasse nada, o que é certo.

II
Mas a ti quero olhar-te até que o teu rosto se afaste do meu medo, como um pássaro do limite afiado da noite.

III
Como uma menina de giz cor-de-rosa num muro muito velho subitamente apagada pela chuva.

IV
Como quando se abre uma flor e revela o coração que não tem.

V
Todos os gestos do meu corpo e voz para fazer de mim a oferenda, o ramo que o vento abandona na soleira.

VI
Cobre a memória da tua cara com a máscara daquela que serás e assusta a menina que foste.

VII
A noite dos dois dispersou-se com a neblina. É a estação dos alimentos frios.

VIII
E a sede, a minha memória é da sede, eu em baixo, no fundo, no poço, eu bebia, recordo.

IX
Cair como um animal ferido no lugar que seria de revelações.

X
Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida. Pálpebras cosidas. Esqueci-me. Lá dentro o vento. Tudo fechado e o vento lá dentro.

XI
Sob o negro sol do silêncio douravam-se as palavras.


XII
Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo. Não, não estou só. Há aqui alguém que treme.

XIII
Ainda que diga sol e lua e estrelas refiro-me a coisas que me acontecem. E o que desejava eu? Desejava um silêncio perfeito.
Por isso falo.

XIV
A noite tem a forma de um grito de lobo.

XV
Delícia de perder-se na imagem pressentida. Levantei-me do meu cadáver, fui à procura de quem sou. Peregrina de mim, fui até àquela que dorme num país ao vento.

XVI
Minha queda sem fim minha queda sem fim onde ninguém me esperou pois ao olhar para quem me esperava outra não vi senão a mim mesma.

XVII
Algo caía no silêncio. A minha última palavra foi eu,embora me referisse à aurora luminosa.

XVIII
Flores amarelas constelam um círculo de terra azul. A água treme cheia de vento.

XIX
Deslumbramento do dia, pássaros amarelos na manhã. Uma mão desata as trevas, arrasta a cabeleira de uma afogada que não pára de caminhar pelo espelho. Voltar à memória do corpo, hei-de regressar aos meus ossos de luto, hei-de compreender o que diz a minha voz.

[Alejandra Pizarnik]

O peso do coração




[Tabu, de Miguel Gomes]

Avarias

"Ah! Eu que pensava estar a dar-lhe tanto! E ele a mim... E esse dar e receber parecia tão certo! Não em termos de coisa calculada, não no calcular do que seria bom para as pessoas que éramos antes, para a nova pessoa, nós. Se pudesse sentir como dantes, mesmo agora tudo me parecia certo. Mas foi então que descobri que éramos apenas uns estranhos (...) Será que só podemos amar o que é criado pela nossa imaginação? Seremos todos nós, de facto, não amantes nem amáveis? Se assim é, cada um de nós é um ser sozinho e então tão irreal é o que ama como o amado, e quem sonha não é mais real do que os seus sonhos."

("- Que lhe parece ele agora?")

"Uma criança a divagar por uma floresta adiante, a brincar com um companheiro imaginário, e que de repente descobre que é apenas uma criança sozinha, perdida numa floresta, e que quer ir para casa. (...) Mas mesmo que encontre o meu caminho para sair da floresta, ficarei com a inconsolável lembrança do tesouro que fui procurar à floresta, sem o ter conseguido nunca encontrar, pois não estava lá, e talvez nem se quer esteja em parte alguma; porque hei-de sentir-me culpada de o não ter descoberto? (...) O que aconteceu é sempre recordado como um sonho em que nos exaltamos pela intensidade de amar em espírito, numa vibração de deleite sem desejo, pois o desejo é saciado pelo deleite de amar. É um estado que não conhecemos, quando acordados. Mas aquilo ou quem eu amei ou em mim estava amando, não o sei. E se nada disso significa qualquer coisa, quero ser curada desta ansiedade por algo que não posso encontrar, e que me curem da vergonha de nunca o encontrar."

[t.s. eliot]

No help for that

there is a place in the heart that
will never be filled

a space

and even during the
best moments
and
the greatest times
times

we will know it

we will know it
more than
ever

there is a place in the heart that
will never be filled
and

we will wait
and
wait

in that space.

[Charles Bukowski]

Eu tenho uma tristeza metida em mim

                                Como já dizia o meu querido Raul Brandão...
 


[tejidosenlosmapas]

Sempre a querer ajeitar a vida um pouco melhor



[Helena Almeida]

Em boa voz digo

Sim – digo-te, pousando as mãos nos teus joelhos - desejo encontrar alguém que me ame com bondade, e saiba ler.

- Alguém que queira ressuscitar para ti?

- Sim, alguém que tenha para comigo essa memória. Alguém que deixe espaços entre as palavras para evitar que a última se agarre à próxima que vou escrever. Alguém que admita que a cartografia dos animais e da pontuação não está ainda estabelecida. Alguém que eu possa ler diferentemente depois de me ler. Alguém que dirá aos animais e às plantas que nem sempre serão servos. Alguém que ao nos amarmos se reconheça de matéria estelar.

[Maria Gabriela Llansol]


 


We are flint and steel to each other

Ontem choveu sem descanso
e fizemos tudo mal. São dias
de pedra e aço – alguém sabe
onde nos levam? Dão-nos
um amor volúvel que lisonjeia
os sentidos, mas não podem
consolar-nos da penúria
de existirmos, tu e eu, cada um
na sua pele, no seu áspero

lugar. E lembram-nos a todo
o instante do que já estava perdido
no escuro de uma gaveta
antes de ter começado,
como um verso interrompido
nas costas de um envelope
ou uma velha cassete
que mal chegámos a ouvir,
hora e meia de remorso

e distorção. Não te salvo,
não me salvas – nem é certo,
quando o medo demora,
que haja ainda o que salvar.
Contra o frio que nos ronda,
resta o lume que ateamos
por ternura, desfastio
ou vontade de vingar
o dissabor de viver.


[rui pires cabral]

Ter uns olhos maus, maus, maus

Não amo meus olhos negros
Esta noite dancei um balé fantástico, cego.
Meus olhos?
Misturaram-se ao negrume das suas pupilas

[Maura lopes Cançado]
As nuvens parecia
que tinham sido penteadas
com pentes de largos dentes
que deixavam
largos riscos no toucado do mar

Ao longe
o vulto difuso da pequena ilha
emergia
acima de uma bruma rósea
com seu pico nevado

Sonhei estar a teu lado:
falar-te
ouvir-te

Mas o vulcão está mudo
e tudo me afasta de tudo

[Ana Hatherly]

Às vezes o importante é deixar a paisagem manipular o coração


Rent a room

Os amores múltiplos de García Marquez:

Pode-se estar apaixonado por várias pessoas ao mesmo tempo, por todas com a mesma dor, sem trair nenhuma. 
Solitário entre a multidão do cais, dissera a si mesmo com um toque de raiva: o coração tem mais quartos que uma pensão de putas.

 Ou os inocentes desejos de João Pedro Silveira:

Ceguinho seja eu 
Se não há dias em que queria
Que o meu coração
Tivesse mais quartos 
Que uma casa de putas.