quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Coisas que despertam uma querida memória do passado


Malva seca. Objectos usados na Festa das Bonecas. Descobrir um pedaço de tecido violeta escuro ou cor de uva no meio das páginas de um caderno.Chove e estamos aborrecidos. Para passar o tempo revemos papéis velhos e descobrimos as cartas de um homem por quem já estivemos apaixonadas.O leque de papel do ano passado. Uma noite de luar.
[Sei Shonagon]

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Sempre semelhante a forma das vidas umas nas outras


A minha dor foi infinita quando ainda recordava
o sabor dos teus lábios
ou a forma em que o mar da tua nudez
rompe contra a tua pele.
Mas hoje já estou a salvo dos teus olhos,
os corpos das outras já esqueceram o teu
e a tudo o que espero
já não lhe faltas tu.
Reuni o egoísmo,
o rancor.
o orgulho...
Como se vai enganar
o que consegue em troca do que mais queria
a recompensa da sua liberdade


[Benjamim Prado]

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Não consigo deixar de pensar em Agustina, - declarou Ernesto


E como que  num passo de dança encostou a pistola calibre 22,
  com que viria a viajar até ao Hades, ao estômago - lugar onde sempre a pensava
       com mais força - dizia.


domingo, 20 de dezembro de 2015

Não olhes. O mundo está prestes a rebentar.


4a:


johanna wallin



[Harold Pinter/ Johanna Wallin]

Das três uma.


There comes a time when you look into the mirror and you realize that what you see is all that you will ever be. 
And then you accept it. Or you kill yourself. Or you stop looking in mirrors.


[Tennessee Williams]

sábado, 19 de dezembro de 2015

Eu tenho a minha vida, e ela é por certo muitas ruínas ainda habitáveis


mpdrolet:

From Indien
Yana Wernicke



[Yana Wernicke]

Ah as tristezas que não valem o tempo, mas existem


Sobre as tuas mãos a sombra de um corpo, ou de um navio. O silêncio das viagens cumpridas. E no meio deste silêncio uma ideia de voz, uma treva agarrada à memória.
Foi então que dei por mim a existir para lá da morte, como se asfixiasse, Mas o passado não senão um sonho. Uma brincadeira com clepsidras avariadas e algum sangue.
Não vale a pena estar triste.
Todas as histórias, todas as mortes, acabam por se apagar.


[Al Berto]

Acredita que se possa viver com um espinho no coração?


nobrashfestivity:

Shomei Tomatsu



[Machado de Assis/ Shomei Tomatsu]

Chamou-lhe «paisagem sem ti» e eu digo «Essas são as que eu mais tenho»


fervem nos ombros
dos montes
as pedras do silêncio
e isto podia ser o mundo
ou a casa onde a morte
se cansa de mentir
no céu, só os restos
dum incêndio trabalham
esta febre do olhar
toda a tarde
te respiro por entre
as árvores submersas!
estou tão quente
como um fruto
que o sol ferrou
só, só eu
te sei cantar
até seres chuva
[gil t. sousa]

Dantes escrevia cartas


há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu....como seriam felizes as mulheres
à beira-mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas esperando o mar
e a longitude do amor embarcado.....
....por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite...
....os dias lentíssimos....sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta.... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci.... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão....
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me
uma pérola no coração. mas estou só, muito só,
não tenho a quem a deixar.)
.... um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala á minha porta....
.... inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite
a felicidade
[Al Berto]

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Quando a doença era acompanhada, apesar do quarto estar escuro


depois com o vento
é a saudade das madrugadas doutros tempos
quando o simples descer uma escada
era a mais extraordinária das aventuras
quando a certeza de encontrar uns braços abertos
estava evidente no fundo da escuridão
[mário-henrique leiria]

A importância danada de uma cabeça cortada



Não te arrependas de nada.
Um verso está sempre certo
mesmo quando errado. A verdade
também, mesmo quando dói
ou fere ou parece inoportuna.
A verdade nunca é inoportuna.
O teu inconformismo é o preço
da nossa libertação e teus versos
florescem no coração do povo.
Não. Não te arrependas de nada.
Não torças o verso, não obrigues
a palavra: um poeta está
sempre certo. Não permitas que o óxido
dos políticos entre na lâmina
dos teus versos. Um poeta não se vende,
não se compra, não se emenda.
A um poeta corta-se-lhe a cabeça.
E uma cabeça cortada não dói, mas
tem uma importância danada.
[Rui Knopfl]

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

As coisas como foram



Supõe que ainda é Agosto e não estás longe
desta cidade que ainda guarda
os últimos vestígios daquela altiva chama do verão
que lentamente foi, como tudo, morrendo;     
imagina que ainda estás aqui, comigo,
na paz desta casa que a luz torna formosa
e busca na memória o esplendor dourado
dos dias perfeitos que nela — porque assim
o desejou algum deus de olhar propício —
vivemos juntos, alheios a tudo o que não fosse
nossa própria alegria de estar juntos.

      Recorda.
                      Olha. Olha essas gloriosas
manhãs: acordaste há momentos,
e esperas em silêncio que eu abra os olhos
para me dares os bons-dias e dizeres-me — hoje também —
que és feliz.
          E apontas-me depois
esse raio de sol que entra pela janela
e aqui, junto à cama, no chão, desenha
um doce charco de ouro.
                                        Não deixes que se apaguem
de tua alma os risos desse tempo,
as palavras ardentes que soavam
como um cristal finíssimo e enchiam de música
as horas do amor: o espaço inocente
da paixão satisfeita nas radiosas noites
que nossos corpos conquistaram.

                                                       Contempla estas imagens,
a esquece-te desse lugar em que agora
para teu desgosto e meu desgosto habitas:
ruas cheias de outono, gente que desconhece
nossa história, terras que não são tuas,
e esse rio que em nada se parece
a este nosso daqui, que sob o sol corre
através dos hortos.

                                Oxalá sempre leves
contigo, a cada instante, minha recordação,
e estas palavras que na noite escrevo
pensando em ti, para que tu as leias,
te ajudem a estar só,
                                   e te acompanhem.

[Eloy Sánchez Rosillo]


terça-feira, 3 de novembro de 2015

Um inerte dia


É domingo hoje

mas nós não saímos

é o único dia

que não repetimos

e que dura menos


Mas põe o teu rouge

que eu mudo a camisa

não como quem

de ilusão
precisa

Tomaremos chá

leremos um pouco

e iremos à varanda

absortos

[António Reis]

Desabitai-me a beleza que bati na pedra, abaixado e louco.



[Herberto Helder/Picasso]

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Não tenho lugar para tantos lugares comuns


You remember too much, my mother said to me recently. Why hold onto all that?
And I said, Where can I put it down?


[Anne Carson]

As dificuldades das faculdades da memória


Poder e não poder
dizer o teu nome sem que me rebente 
dentro do estômago, dos intestinos, dos pulmões
a faca de infecções de que poderei morrer. 


[Joaquim Manuel Magalhães]

Datas


Passam-se as datas
Vão-se as emoções
Diluem-se os dias
Em contradições.

Agora se chora
Logo se ri,
Perdi o meu sonho
Perdendo-te a ti.

Mas as datas voltam
E os dias não,
Para que servem as datas
No meu coração.

[A. Neves Pinheiro]

Tão só que nem me ocorre a ideia de estar só


Esquecera aquela tarde de Agosto, há pouco mais de um ano, quando se tinham sentado sozinhos sobre a relva debaixo dos bordos, vendo o temporal a varrer o vale do rio e a subir na direcção deles, e então o tema fora a morte. E Port dissera: «A morte vem sempre a caminho mas o facto de não sabermos quando chegará parece afastar a natureza finita da vida. É essa terrível precisão que odiamos tanto. Mas, como não sabemos, pensamos que a vida é um poço inesgotável. No entanto, tudo acontece apenas um certo número de vezes, na verdade um número muito reduzido. Quantas vezes mais recordarás uma certa tarde da tua infância, uma tarde que é, tão profundamente, uma parte do teu ser que nem podes conceber a tua vida sem ela? Talvez mais quatro ou cinco vezes. Talvez nem tanto. Quantas vezes mais contemplarás a lua cheia a erguer-se? talvez vinte. E, no entanto, tudo parece ilimitado.

[Paul Bowles]

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Ensinamento


Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

[Adélia Prado]

O poema não espera por ninguém


Falámos tanto ou tão pouco que de repente o silêncio que se fez
foi essa patada no peito, de que guardaremos a marca quando
agora choramos, quando estendemos as mãos carregadas de 
dedos mortos, sonhámos tanto que mais de uma vez tivemos de
matar, que mais de uma vez nos estoiraram os olhos sob a pólvora
das lágrimas e as tuas mãos voaram estilhaçadas, jogámos tanto
que para não nos perdermos arriscámos tudo, até tornar a
morte uma coisa nossa, tão nossa, que é ela que anda agora vestida
com a nossa pele e os nossos ossos, escorregando pelas paredes
de cabeça para baixo ou subindo pelo interior dos bicos, passando
de cadafalso em cadafalso, com os lábios furados pelas unhas, com
a cintura roxa das dentadas da noite, da miséria dos dias.
Roda de todas as torturas e de todas as seduções, deixaste de girar.
Estás agora aqui, partida, abandonada no próprio local do sangue.
Transportada de homem em homem através dos séculos, foste há
pouco deposta pelo último homem, esse que desapareceu, ia de lado,
com os joelhos duros cobertos de água e as mãos cem metros à sua
frente em sinal de maldade. Corpo a corpo foste gasta até à última
noite e até à última estrela, palavra a palavra foste sugada e bebida e
de todos os lados sempre novas sempre novas bocas chegavam para te
sugar e beber. Ficaste um gesto que perseguimos à dentada e acabámos
por matar. Vede: a destruição prossegue docemente. Restam apenas,
aqui e além, algumas cidades com os seus milhões de almas e nada mais.
Pequenas marcas de sangue, cada vez mais vivas, assinalam a nossa
passagem entre as agulhas de carvão do tempo. Canhões ocupam a entrada
da luz. E de norte a sul, de leste a oeste, de criança para criança,
aguarda-se o sinal de fogo.
Não estranheis os sinais, não estranheis este povo que oculta a
cabeça nas entranhas dos mortos. Fazei todo o mal que puderdes
e passai depressa.
[António José Forte]

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Sozinha, no amor.


  Verdes, cor-de-rosa, aneladas, desenhadas. De elas se diz que têm relações consigo mesmas e vêmo-las no espasmo.
  Ou rígidas como um dedo conseguem beber na fonte das rosas. São aparentadas com as rosas, o alecrim? e a pereira.
  Consideram-nas apenas sonhos, representação dos pecados dos homens.

  Mas eu, em miúda, à luz do sol e da lua, acredito nelas, sei que realmente existem.
  Vi-as abrir os lábios, negros como a noite, a dentadura de ouro, atrás de uma amêndoa, um pedacinho de abóbora;

          enfrentar a própria linha, brincando e brigando; e sozinha no amor, retorcer-se até morrer.


[marosa di giorgio]

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Um ou dois


Numa azinhaga escura de arrabalde
haveis de sepultar-me. Que o meu túmulo
seja o lugar escuso para encontros.
Que o jovem desesperado e solitário
vagueando venha masturbar-se ali;
que o namorado sem um quarto aonde 
leve ao castigo a namorada, a traga
e a force e a viole sobre a minha tumba;
que o invertido venha ajoelhar-se
à beira dela ante quem esperma vende,
e deite abaixo as calças e se entregue,
as mãos buscando apoio nessa pedra.
Que bandos de malandros ali tragam
a rapariga que raptaram, e
a deixem lá estendida a escorrer sangue.
Que as prostitutas reles, piolhosas,
na laje pinguem corrimentos quando
a pobres velhos se venderam lá.
E que as crianças que brincando venham
jogar à minha volta, sem pisar nos cantos
a trampa mais cheirosa do que a morte
e que é memória humana de azinhagas,
ali descubram, mal adivinhando,
as nódoas secas do que foi violência,
ou foi desejo ou o que chama vício
e as lavem rindo com seu mijo quente
a rechinar na pedra que me cobre
(e regressem um dia a repeti-las)

[Jorge de Sena]

sábado, 12 de setembro de 2015

O tremer obscuro das mãos, sem se saber ao certo onde


Escrevo-lhe do fim do mundo. É preciso que o saiba. Amiúde as árvores tremem. Apanham-se as folhas. Têm uma imensa quantidade de nervuras. Mas de que servem? Não há mais nada entre elas e a árvore, e dispersamo-nos, incomodados.
Será que a vida na terra não poderia prosseguir sem vento? Ou será preciso que tudo trema sempre, sempre?
Há também tumultos subterrâneos, e dentro de casa, como raivas que surgissem à nossa frente, como seres severos que quisessem arrancar confissões.
Não se vê nada, como se importasse muito pouco ver. Nada, e todavia treme-se. Porquê?
[henri michaux]

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Ah sim, respirar...


respira maria
que pode ser o mar
que pode ser só o medo
de cair
ao andar

[Nuno Moura]

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Uma missa, há quem o diga


Há um ano que os teus gestos andam
ausentes da nossa freguesia
Tu que eras destes campos
onde de novo a seara amadurece
donde és hoje?
Que nome novo tens?
Haverá mais singular fim de semana
do que um sábado assim que nunca mais tem fim?
Que ocupação é agora a tua
que tens todo o tempo livre à tua frente?
Que passos te levarão atrás
do arrulhar da pomba em nossos céus?
Que te acontece que não mais fizeste anos
embora a mesa posta continue à tua espera
e lá fora na estrada as amoreiras tenham outra vez florido?

Era esta a voz dele assim é que falava
dizem agora as giestas desta sua terra
que o viram passar nos caminhos da infância
junto ao primeiro voo das perdizes

Já só na gaveta te levamos morto àqueles caminhos
onde deixaste a marca dos teus pés
Apenas na gravata. A tua morte
deixou de nos vestir completamente
No verão em que partiste bem me lembro
pensei coisas profundas
É de novo verão. Cada vez tens menos lugar
neste canto de nós donde anualmente
te havemos piedosamente de desenterrar
Até à morte da morte

[Ruy Belo]

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Que a tua imagem não mais seja este enjoo mas uma flor, ainda que feia.



Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
[Carlos Drummond de Andrade]

domingo, 23 de agosto de 2015

Reservado ao veneno


Hoje é um dia reservado ao veneno
e às pequeninas coisas
teias de aranha filigranas de cólera
restos de pulmão onde corre o marfim
é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer o sol
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
alguém que não percebia nada de comércio
lançou no mercado esta ferrugem
hoje não é a mesma coisa
que um búzio para ouvir o coração
não é um dia no seu eixo
não é para pessoas
é um dia ao nível do verniz e dos punhais
e esta noite
uma cratera para boémios
não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria
é um dia a mais ou a menos na alma
como chumbo derretido na garganta
um peixe nos ouvidos
uma zona de lava
hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo
com sirenes ao crepúsculo
a trezentos anos do amor a trezentos da morte
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
não é um dia para homens
não é para palavras


[António José Forte]

Ser a memória uma ferida vasta




[Rogier V, Der Weyden]

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Faz que sim, que sim.




elisa. elisa tem ancas gordas e beiços carnudos.
elisa gosta de telefonar ao noivo. sentada no sofá,
com o joãozinho à beira, marca o número e diz:
elisa sim meu bem. entretanto o joãozinho mete os
dedos por baixo da saia de elisa, mete as mãos,
mete os braços. elisa diz: sim meu bem. enquanto
elisa se recosta, joãozinho mete a cabeça debaixo
das saias de elisa, e faz que sim, faz vivamente
que sim, enquanto elisa diz: sim meu bem. sim.
estes telefonemas com o noivo são tão longos!
separaram-se há pouco tempo. o noivo suplica: não
chores elisa. não suspires. a separação não será
eterna. elisa acalma-se. joãozinho sai cá para fora.
elisa chega-se muito a ele. joãozinho está agora
de pé. o noivo fala fala fala. pergunta: elisa
já comeste os bombons todos que te mandei minha
gulosa? elisa não responde. está com a boca cheia.
mesmo na conchinha do ouvido, muito suavemente,
o noivo chama-lhe gulosa. e outros mimos. outros.

[Alberto Pimenta]

domingo, 9 de agosto de 2015

Qualquer coisa


Os homens têm sempre alguma coisa de patético, em qualquer idade. Uma insolência frágil, uma audácia temerosa. Hoje já nem sei se alguma vez despertaram em mim amor ou apenas uma afectuosa compreensão pelas suas fraquezas.


[Elena Ferrante]

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Um beijo



Porque a mulher disse ao homem
vá ver se eu estou na esquina
ele foi.
E lá estava ela. Na esquina.
só que mais leve mais doce mais bonita.
Dali mesmo foram juntos
comprar cigarros para sempre
[Eucanaã Ferraz]

domingo, 26 de julho de 2015

De novo as quintas ao sol


É quase fim-de-semana e podemos, talvez, beber uma cerveja
ao cair da tarde, enquanto planeamos a viagem a Paris. E se Paris
for muito caro - sei que isto não está fácil - podemos ir a Guimarães
assistir a um concerto, que ouvir é a maneira mais pura de calar.
Vem à Quinta-feira.
A seguir, temos ainda a Sexta e talvez me esperes à porta do emprego,
e talvez fiques para Sábado e Domingo, e talvez o mundo pare
de acabar tão depressa.
Vem à Quinta-feira.
Mas não venhas nesta, vem na próxima.
Nesta, tenho um compromisso que não posso adiar, é um compromisso
profissional - sabes que isto não está fácil - e talvez nos dê hipótese de irmos
a Paris ou a Guimarães. Vem na próxima, que eu preciso de tempo
para arranjar o cabelo, para arranjar o coração,
para elaborar a lista do que me falta fazer contigo.
Vem à Quinta-feira e não te demores.
Enquanto te escrevo, já fui elaborando a lista
(sabes como gosto de pensar em tudo
ao mesmo tempo)
e afinal o que me falta fazer contigo
não é caro:
- viajar de auto-caravana,
- dançar pela Estrada Nacional,
- ver-te chorar.
Choras tão pouco. Ainda bem que estás contente.
Vem à Quinta-feira.
Se não pudermos ir a Paris ou a Guimarães, não te preocupes.
Vem na mesma, que eu vou apanhando as canas-da-índia, as fiteiras,
eu vou recolhendo a palha e reunindo cordas e lona.
Já estive a aprender no Youtube como se faz uma cabana.
Vem na mesma, que eu vou procurando um lugar seguro.
Vem na mesma porque a cabana, como a casa, só funciona com amor
- ou, pelo menos, é o que diz o Youtube.
Temos ainda tanto para fazer.
Por isso, se algum dia voltares, meu amor, volta numa Quinta.
[Filipa Leal]

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Chegar


Nas tardes mais longas,
A luz, gélida e amarela,
Banha as testas
Serenas das casas.
Um tordo canta,
Rodeado de louro
No quintal fundo e desprotegido,
Com a sua voz recém-descascada
A espantar as paredes de tijolo.
A primavera chegará em breve,
A primavera chegará em breve –
E eu, cuja infância
É um aborrecimento esquecido,
Sinto-me uma criança
Que chega a uma cena
De reconciliação adulta,
E não consegue perceber nada
Senão as gargalhadas invulgares,
E principia a ser feliz.


[Philip Larkin]

Uma embarcação à deriva



[Rui Pedro Gonçalves]

Arfando um azedo ruído caído



o tempo insiste
em arrastar móveis pesados
há sempre um piano
que não passa na porta
notas suspensas
cordas frágeis
que sempre ruem
antes que o piano toque a rua
em áspero ruído
[Nydia Bonetti]

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Equador


mais tarde
sentiria a dor da terra seca

havia de ouvir o cinzel do tempo
e experimentar o arrepio
da fusão lenta dos espelhos

que estranho fogo nos queima
quando da solidão suprema
se ergue o chão de todas as coisas

e exangues de saudade e medo
aí deixamos o amor
todo o amor
com a violenta ternura
do que é eterno

quanto mais se pode dar
a quem um dia nos cruzou o coração
como um equador
de vida e paixão?

[gil t.sousa]

Como vês, ninguém de ti se há-de lembrar


Um corpo ergue torres
na noite para o mar.

O vento das rochas, o sal,
cobrem-lhe a cabeça escurecida.

No feixe dos desejos pousa
o corvo, nos giestais ao
levantar voo faz-se lume.

O que vem de estar
frente ao amor,
com medo do amor.

[Fernando Luís]

Mau tempo



[Rui Caeiro]

Mata-me de novo, só mais um bocadinho



i know a man
who photographed the view he saw
from the window of the room where he made love
and not the face of the woman he loved there.

[yehuda amichai]

sábado, 27 de junho de 2015

Indicando direcções


Acordei também com os pássaros
E estudei a posição em que os bordava
Nos seus vestidos
E disse: para que lhes espetas a agulha no coração
E ela respondeu: para que aprendam a direcção do voo

[Daniel Faria]

Uma tatuagem: a primavera desponta através dos gestos mais pequenos




[Hilma af Klint]

O importante é que a tristeza não nos coma por inteiro



                                Mas só uma ou duas porções, para que não sejamos totalmente distorcidos.




[David Milne]



quinta-feira, 25 de junho de 2015

Um erro


São um erro,
estes braços e pernas
que já não funcionam
Quebraram-se agora
e não há lugar para desculpas.
A terra não nos consola,
só te cobre
se tens a decência de permanecer calado.
O sol não perdoa,
olha e segue o seu caminho.
A noite penetra-nos
através dos acidentes que temos
infligido um ao outro.
A próxima vez que perpetremos
o amor, temos que
decidir primeiro quem vamos matar.

[Margaret Atwood]

Coração, a palavra mais gasta da minha língua




Como música ou como um astro



[Sónia Baptista]

Uma justificação


Há uma rebelião salutar naquilo que desejamos, por mais medo ou incêndios que nasçam por entre as unhas. Possivelmente só mais tarde aparecerá o arrependimento. Mas enquanto estamos a salvo, um tanto ou quanto sem sentidos, sem metas, sem restrições, ah enquanto isso podemos ir sendo o que bem entendermos.

Hoje recolho algumas lágrimas, ah mas com que pele as hei-de salvar?




[Henri Matisse]

Um homem crescido


A todos disse adeus. Desde a minha infância
fez-me homem, lentamente, a despedida.
Mas persisto em voltar, quero recomeçar,
este regresso nítido liberta-me o olhar.
Só me resta dar-lhe plenitude,
e essa minha alegria que nunca aprendeu
por ter amado as coisas quase parecidas
com essa ausência que nos faz agir.

[Rainer Maria Rilke]

Ternuras ou uma confissão sem pressas


Retomo um perfume antigo e alguém me diz "Hoje estás mesmo a cheirar a quando te conheci..."
Quem nos decora o cheiro certamente amar-nos-á.

domingo, 14 de junho de 2015

Com o indicador e o polegar esmaguei as flores, já não há altura possível


noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu cansaço e a
minha miséria, os teus braços e os meus, altos como
cidades, altos como flores

[mário cesariny]

quinta-feira, 21 de maio de 2015

A descoberta do mundo dos sons


Ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço demais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrer antes de alguém chegar

ainda não há uma flor na boca
para os poetas que estão aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem

ainda não há nada no pulmão direito
ainda não se respira como devia ser
ainda não é por isso que choramos às vezes
e que outras somos heróis a valer

ainda não é a pátria que é uma maçada
nem estar deste lado que custa a cabeça
ainda não há uma escada e outra escada depois
para descer à frente de quem quer que desça

ainda não há camas só para pesadelos
ainda não se ama só no chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração

[António José Forte]

A obscura palavra do deserto


Tão bela como a mão da amada
sobre o mar.
Tão sozinha.
Escrevo para ti. A dor é uma concha. Nela se ouve o coração perlar.
Escrevo para ti no limiar do idílio, para a planta das folhas de água. dos espinhos de chamas, para a rosa de amor.
Escrevo para nada, para as palavras luzentes que a minha morte traça, para o instante de vida eternamente devido.
Tão bela como a mão da amada
sobre o sinal.
Tão sozinha.
Escrevo para todos. Escrevo-te de uma país de pesa como os passos do forçado, de uma cidade igual às outras onde os gritos camuflados se torcem nas montras; de um quarto onde as pestanas a pouco e pouco destruiram o silêncio.
Tu és, predestinada destinadora, a minha mão de escrever; alegre inspiradora do dia e da noite.
Tu és o colo de cisne desento de azul.
Tão bela como a mão da amada
sobre os olhos.
Tão doce.


[Edmond Jabès]

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Assim é



[Inês Dias]

Ah, as grandes questões de uma vida


«By choosing to live above the ordinary level we create extraordinary problems for ourselves. The ultimate goal is to make this earth a paradise.
(…)
For me it is no problem to depend on others. I am always curious to see how far people will go, how big a test one can put them to.
(...) It’s only when we demand that we are hurt. I, who have been helped so much by others, I ought to know something of the duties of the receiver. It’s so much easier to be on the giving side. To receive is much harder — one actually has to be more delicate, if I may say so.»

[A Literate Passion: Letters of Anaïs Nin and Henry Miller, 1932-1953]

Tuas mãos de soldado a arder em febre


depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas ambas, tão claras,
tão seguras, são as mãos de um soldado a arder em febre,
aves a percorrer o seu novo deserto.

[Mário Cesariny]

Dois tropeções na ternura




É simples a separação.
Adeus.
Desenlaçado o último abraço, uma pressa de dar costas um ao outro.
Já não há gestos. O derradeiro (impossível) seria não desfazer o abraço.
Pressa de cada um retomar o outro na teia lenta da relembrança.
Não desfazer o abraço. Ficar de face encostada ao niagara dos cabelos.
Sobram fotografias, voz no gravador, um bilhete na caixa do correio.
Sobra o telefone.
Tensão-telefone. Possibilidade de voz não póstuma.
No gravador, voz de ontem, de anteontem. De há anos.
Sobra o telefone. Mudo.
Retininte?
Sobrarão cartas. Sobra a espera.
Na teia lenta da relembrança, retomo-te em memória recente: na praia da ternura onde nos enrolámos e desenrolámos desesperados de separação.
Sobra a separação.


[Alexandre O'Neill]

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Enganei-me na idade que tenho, ou terá sido na razão?


que o meu pensamento caminhe pelo faminto
e destemido e sedento e servil
e mesmo que seja domingo que eu me engane
pois sempre que os homens têm razão não são jovens

[e.e. cummings]

A firmeza do chão pugnando contra meus pés


nº 237 - Parcialmente, a santidade consiste na capacidade de praticar transgressões bem orientadas. Por exemplo: matando em nós os fantasmas tutelares. Sem ternura. É assim que se atinge a múltipla orfandade.

nº 238 - O que pensará uma formiga ao ser contemplada por uma mosca poisada na parede? Quanto mais se pensa no sofrimento mais se compreende que tudo é devido a um incomensurável não-saber.

nº 239 - Tudo está aqui para alguma coisa, para desempenhar um papel, uma missão, pensamos utilitariamente. Eu, gosto das portas. A porta entreaberta, por exemplo: irá fechar-se? irá abrir-se? dar passagem? Oh subtil porta que tão indiferentemente abres-fechas: nem sei se olho para dentro ou de dentro.

nº 240 - Os livros quando são lidos por leitores apaixonados, alegres soltam suas folhas coloridas pelos ares da mente, guardião involuntário em todas as ocasiões. Este é um discurso cuja antiguidade reconstituo ludicamente enquanto escondo a ferida do tempo.

nº 241 - Era uma vez uma pessoa que andava sempre com uma palavra debaixo da língua. Quando a tinha na ponta falava, dando pequenos estalos de prazer. Depois lambia os beiços gulosamente. Estamos aqui à espera de quê? Imagina-acção.

nº 242 - Vou de comboio. Penso no terror que nos habita, que nos segue como imensa ignorada cauda. Chegando à estação vejo o meu rosto reflectido no vidro da janela. Olho fixamente o meu próprio rosto.

nº 243 - Ia pela rua fora, como de costume, quando vejo uma porta entreaberta que dava para um corredor muito comprido. Entro. No fundo há uma porta fechada. Bato à porta. Uma voz pergunta: quem é? Sou eu, digo. Eu quem? respondem. E não abrem a porta.


[Ana Hatherly]

Um som de azul


 
[John Ruskin]

Quando os dedos se renomeiam e passam a querer dizer outras coisas


Aceitar o dia. O que vier.

Atravessar mais ruas do que casas,
mais gente do que ruas. Atravessar
a pele até ao outro lado. Enquanto
faço e desfaço o dia. O teu coração
dorme comigo. Agasalha-me as noites
e as manhãs são frias quando me levanto.
E pergunto sempre onde estás e porque
as ruas deixaram de ser rios. Às vezes
uma gota de água cai ao chão
como se fosse uma lágrima. Às vezes
não há chão que baste para a enxugar.


[Rosa Alice Branco]

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Road and Rocks, ou a passagem do tempo na paisagem


 
[Edward Hopper]

Serei também uma mulher cheia de noite



porque ó velho belo Sigmund Freud a ciência psicanalítica esqueceu algures a chave:
abrir abre-se
mas como fechar a ferida?


a alma sofre sem tréguas, sem piedade, e os maus médicos não restauram a ferida que supura.
o homem está ferido por um golpe que talvez, ou com certeza, foi provocado pela vida que nos dão.
«Mudar a vida» (Marx)
«Mudar o nome» (Rimbaud)


[Alejandra Pizarnik]

A nuvem de calças


Acham que é um delírio de malária?...

Mas isto aconteceu:
aconteceu em Odessa.

Disse Maria: «Virei às quatro.»

Mas deram as oito.
E deram as nove.
E deram as dez.

E a tarde
da janela fugiu
para o noturno horror,
umbroso
e dezembrino.

Nas suas costas caducas riem e galhofam
candelabros.

Ninguém me poderia agora reconhecer:
este gigante musculoso, que geme
e se contorce.
Que pode querer tal colosso?
Mas o colosso que bem quer!

Que importância tem
ser de bronze com o coração de ferro frio!
De noite quero ocultar o meu metal
em algo suave e feminil.

E eis
que desmarcado
me debruço à janela,
fundindo o vidro com a testa.
O amor virá ou não virá?
Será
grande ou pequeno?
Como pode ser grande num brutamontes destes?
Terá de ser pequeno, um amorzito dócil,
que se assusta com as buzinas dos carros
e adora as campainhas dos elétricos.

Cada vez mais
o rosto afundo
no semblante bexigoso da chuva,
e aguardo,
salpicado pela fragor da rua.

A meia-noite, com uma faca,
chegou,
o dia apunhalou
- e pronto!

E caíram as doze badaladas
como do cepo cabeças degoladas.

Nos vidros se juntavam
cínzeas gotas de chuva,
formando uma careta deformada,
uivando quais quimeras
de Notre Dame de Paris.

Maldito!
Não te chega?
Prestes a boca soltará um grito!

Escuto:
silencioso,
como um doente de cama,
ergueu-se um nervo.
Depois caminhou
lentamente,
a seguir correu,
convulsivamente, cauteloso.
Agora, com mais dois,
dança um fandango insano.

Cai no andar de baixo um bocado de estuque.

Os nervos grandes,
pequenos,
muitos!
saltam
como loucos,
e já
estão de pernas cansadas!

E a noite penetra-me no quarto:
não posso abrir os olhos de lodo pesados.

Rangem as portas de repente
como se o hotel
estivesse a bater o dente.
Tu entraste,
brusca como um desafio,
torturando as luvas de camurça,
e disseste:
«Sabes?
Vou-me casar.»

Está bem, casa.
Que queres que faça?
Hei-de me recompor.
Não vês como estou calmo?
Como o meu pulso
parece o dum defunto?

Lembras-te como costumavas dizer:
«Jack London,
dinheiro,
amor,
paixão,» e
eu só te via
a ti Giocconda
pra roubar!

E roubaram por fim.

De novo entrarei no jogo apaixonado,
iluminando a curva do meu cenho.
Então?

Numa casa queimada
às vezes vivem vagabundos sem casa!

Ris-te?
«Tens menos esmeraldas de loucura
do que há copecas no bolso dum mendigo.»
O destino de Pompéia
não olvides
depois de irritarem o Vesúvio!

Eh!
Senhores!
Amantes
de sacrilégios,
crimes
e massacres, vistes
o mais cruel
dos meus rostos
quando
estou
absolutamente calmo?

E sinto
que eu próprio
me sou pouco.
E de mim alguém se tenta rir.

Está?
Quem é?
Mamã?
Mamã!
O teu filho está belamente enfermo!

Mamã!
Tem fogo no coração.
Diga às manas, Liúda e Ólia,
que não tenho para onde ir.
Cada palavra,
mesmo uma graça,
que jorra da minha boca ardente,
salta como uma rameira nua
dum bordel incendiado.

As pessoas fungam:
cheira a queimado.
Chamaram a brigada
cintilante.
De capacete!
Não se pode entrar de botas!
Digam aos bombeiros:
só com carícias se pode apagar um coração a arder.
Eu próprio
deitarei dos olhos catadupas de lágrimas.
Deixem-me descansar.

Salto? Não salto? Salto?
As lágrimas caíram.
Não se pode escapar ao coração!
No rosto ardente,
dos lábios gretados
um beijo carbonizado quer erguer-se.

Mamã!
Cantar não posso.
Na capela do coração já o coro pega fogo.
Em chamas, figuras de cifras e palavras
saltam do crânio
como crianças duma casa a arder,
com o mesmo terror com que se ergueram ao céu
braços acesos no convés do Lusitânia3.
Ante a gente tremendo
no silêncio do lar, um brilho de cem olhos explode do refúgio.
Ó meu último grito, pelo
menos tu
brada que estou a arder pelos séculos fora.
 

[ Vladimir Mayakovsky]

quarta-feira, 25 de março de 2015

Ao cabo de longo tempo é a perda de Herberto que me faz regressar às palavras.

O dia vinte e três é um dia como outro qualquer para se morrer. Março, porém, mancha-se talvez de mofo e assim algo de triste muito sossegadamente vai fermentando nos passos que dou em volta deste país, agora seguramente mais pobre.

Esta é apenas uma breve nota sobre o fino fio de aço que as palavras certas
a cumplicidade que as palavras certas por alguém ditas
atam em nós.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

XIII


Eu não varri as folhas
Para que passasses sem dar por isso
Nem calei os pássaros
Para que não dissesses nada

Agarra-te às nuvens
Se puderes

E deixa-me morder em paz
Esta maçã
Que não tem bicho.

[Sebastião de Lorena]

Desígnios


- Diz-me como a amas, Will.
- Como a doença e a sua cura, juntas.

[Argumento de A Paixão de Shakespeare, Tom Stoppard]

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

A mim alguém me deixou nas costas uma pedra como a de Sísifo, leva-la-ei comigo até ao esquecimento



[Ticiano]

Fosse eu essa Chepita e alguém viesse em meu socorro


Estás triste, é certo, mas tu não és tristeza, tu és alegria e serenidade e paz. Não vejas apenas um aspeto de ti mesma, um acidente da tua própria substância; tu és todas as coisas juntas, e o mar e as estrelas e o sol anunciam-se em ti.

[Jaime Sabines]