domingo, 31 de janeiro de 2016

Se eu falar em tristezas por favor amordaça-me o coração


Porque será que ninguém ri
quando se estatela um cego?

Porquê cal sobre o ventre?
Porquê aí, onde se começa?

Porque será a pornografia
desdita maior que a impotência?

Porque se embriagam
os que derrubam árvores e apanham peixes?

Porque é mais aflitiva a sirene
da ambulância que a sineta do cemitério?

Porque escorrem fios
de lágrimas, antes do abate, os bois?

Porque se alimentam os homens
com a morte, e ela, acertando contas, os devora?

Porque acabam os filhos
por assemelhar-se à pele dos pais?

Porque se volta aos lugares de infância
como um homicida ao local do crime?

Porque há gente que nem compaixão
devia merecer pela sua miséria?
 

[António Osório]

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Ah, as coisas que sabemos e nos vergam as costas


sei muito bem que soube sempre umas coisas
que isso pesa
que lanço os turbilhões e vejo o arco íris
acreditando ser ele o agente supremo
do coração do mundo
[mário cesariny]

domingo, 24 de janeiro de 2016

O espaço do poeta


A escrivaninha negra com entalhes,
os dois candelabros de prata, o cachimbo vermelho.
Está sentado, quase invisível, na poltrona, com a janela sempre às suas costas.
Por detrás dos óculos, enormes e cautos, observa o interlocutor à luz intensa,
ele próprio oculto dentro de suas palavras, dentro da História,
com personagens seus, distantes, invulneráveis,
capturando a atenção dos outros nos delicados revérberos
da safira que traz num dedo, e alerta sempre para saborear-lhes as
expressões, nos momentos em que os tolos efebos
umedecem os lábios com a língua, admirativamente. E ele,
astuto, sôfrego, sensual, o grande inocente,
entre o sim e o não, entre o desejo e o remorso,
qual balança na mão de um deus, ele oscila por inteiro,
enquanto a luz da janela atrás lhe põe na cabeça
uma coroa de absolvição e santidade.
“Se a poesia não for a remissão – murmura a sós consigo -
não esperemos então misericórdia de ninguém.

[Yannis Ritsos]

Pois bem,


Eles estavam sentados de mãos dadas
iguais ao passado
iguais sem perceber que as coisas tinham mudado
A madrugada durou muito mais tempo e não foi melancólica
era cinzento-verdade e por isso era fresca
e eles receberam-na pela primeira vez alegres sem saber.
Nessa música actual
a campainha tocou um novo dia
e eles autómatos obedientes
procederam ao enterro higiénico do amor.


[Y. K. Centeno]

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

And you read your Emily Dickinson...


Because I could not stop for Death,
He kindly stopped for me;
The carriage held but just ourselves
And Immortality.

We slowly drove, he knew no haste,
And I had put away
My labor, and my leisure too,
For his civility.

We passed the school, where children strove
At recess, in the ring;
We passed the fields of gazing grain,
We passed the setting sun.

Or rather, he passed us;
The dews grew quivering and chill,
For only gossamer my gown,
My tippet only tulle.

We paused before a house that seemed
A swelling of the ground;
The roof was scarcely visible,
The cornice but a mound.

Since then 'tis centuries, and yet each
Feels shorter than the day
I first surmised the horses' heads
Were toward eternity.

[Emily Dickinson]

Qualquer coisa assim/ como um tempo sem fim como um espaço sem tempo





[Mário Cesariny/ Robert Frank]

Meu rio minho, atravessando o sangue



num barco no rio,
num barco subindo
o rio te peço
que amanhã não vás,
que não vás embora
deste rio minho,
que não te separes
do rasto do barco,
dessa ágil espuma,
do vento a passar
pelos teus cabelos
e do sol na cara,
nem de mim que te olho
nos olhos, pedindo.
há gente nas margens?
haverá, não sei.
há velas, motores,
arvoredos, ilhas?
há esquiadores?
pedregulhos, perigos,
sombras da boega?
é forte a corrente?
sei lá. sei que peço
fiques mais um dia
e não quero, não,
que te vás embora.

[Vasco Graça Moura]

They lived and laughed and loved and left.





[Melancholy]

A vida alegórica de uma foda bem dada


A falta
de um abraço
faz de mim
um palhaço
quando o poema
está
em vez
da foda
incomoda
torna-se coisa
de circo.


[Adília Lopes]

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Sobre as dores


Dorme meu filho
o amor
será
uma arma esquecida
um pano qualquer como um lenço
sobre o gelo das ruas
[mário cesariny]