quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Ao que virar


Não sei para que lado da noite me hei-de virar
onde esconder de ti o rio de fogo das lágrimas
quase a transbordar e acendo mais um cigarro
e falo atabalhoadamente de um futuro qualquer
e suspiro de alívio porque não ouves o que digo
ou se calhar também não sabes onde te esconderes
esperamos que se ilumine o lado certo da noite


[Carlos Alberto Machado]
 

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Recordar as folhas de papel que nos caíram ao chão e muito levemente pisamos


silêncio
eu ato-me ao silêncio
eu atei-me ao silêncio
e deixo-me ir
deixo-me beber
deixo-me dizer

apunhalada pela ausência
pela espera infausta
hei-de renascer para
brincadeiras terríveis
e depois lembrar tudo

[Alejandra Pizarnik]

Vertigens do lado de baixo


Assediados pela fome, pelos apagões, pela desvalorização dos salários e pela paralisia dos transportes - entre muitos outros males - Ana e eu vivemos um período de êxtase.

A nossa magreza, potenciada por longas deslocações que fazíamos nas bicicletas chinesas compradas nos nossos centros de trabalho, fez de nós seres quase etéreos, uma nova espécie de mutantes, capazes não obstante de aplicar as últimas energias a fazer amor, a conversar horas e horas e a ler como condenados - Ana poesia, eu, depois de muito tempo de privação, romance novamente.

Foram anos quase irreais, vividos num país lento e escuro, sempre tórrido, a desmoronar-se diariamente, mas sem cair nas cavernas da comunidade primitiva que nos espreitava.

Mas anos também em que nem a mais desoladora escassez conseguia vencer o júbilo que nos dava a mim e a Ana vivermos um com o outro, como náufragos que se amarram um ao outro para se salvarem juntos ou perecerem em companhia.

[Leonardo Padura]

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O infinito


Desde aí o salgueiro ficou sendo um lugar
 de peregrinação.
Mas só eleitos capazes de sair voando
 de uma aula poderiam ver os dois
corpos deitados, e até hoje ninguém
 os viu, embora lá estejam movendo-se
 infinitamente.
Por isso a história começa sem começar
 e acabar sem acabar.
Como qualquer coisa que se parecesse
muito com o infinito.

[José Saramago]

Infestada de dedos a memória a povoar-nos


 [...] uma profunda e melancólica intimidade com a casa, o quintal, a recordação dos mortos.

[José Régio]

Umas ruas, fétidas ruas que tenho a desaguarem-me no coração


sábado, 9 de agosto de 2014

O sal nos beiços


Há manhãs em que a poeira do mar se mistura à poeira azul do céu.
Um hálito fresco e húmido, uma exalação viva e salgada, vem do largo e das profundas – de toda essa constante agitação, que nos dá um sentimento de vida ilimitada.
Sai dos farrapos da névoa, dos laivos onde bóiam espumas, dos redemoinhos lívidos de cólera.
A esta hora o dia está de chumbo.
No horizonte a claridade debate-se para irromper, e só ilumina uma parte do mar em fusão.
Não se vê ainda a costa.
A névoa flutua em farrapos, e de repente, lá do fundo uma espessa fumarada cresce sobre a terra.
Só muito longe uma nódoa azul esparralhada flutua à superfície das águas...
Os barcos formam circulo para além da baía, entre as Berlengas e a costa: sete, oito, dez, de vela triangular, que se preparam para erguer a armação da sardinha – uma grande rede com um saco – o copo.
A sardinha, ao encontrar no seu caminho a rede, deriva para o saco, tirando-a os pescadores com a xalavara para dentro dos barcos.
É uma onda de prata que sai da tinta azul.
Cheira a algas e a mar vivo.
Impregna-me e trespassa-me.
Deixa-me sal nos beiços.

[Raul Brandão]

Tocar aonde se dobra o poente



[Salvador Dalí]

XVII


Anónimo e cego
Apenas toca
E ninguém lhe diz nada.

Chove por cima dele.

E a única música que sabia
Fica encharcada.

[Sebastião de Lorena]