segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Amar com unhas muito compridas


Porque eu amo-a extraordinariamente. Tenho-a amado com cólera - e nisto não há contradição. - Amo-a se não me incomoda - amo-a se meu fantasma, que a detesta, não quer ser livre e só se não se põe a pregar. Amo-a com contradições, com discussões, com momentos de sinceridade, de dúvida e de exaspero.

[Raul Brandão]

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Alguma redundância, sim, pó - com certeza.


À infância só se chega partindo de muito longe. A infância é aí, onde partes, não onde chegas. Olha para trás. Que vês? Nada. A memória é a única coisa que verdadeiramente te pertence, mas lembras-te de um estranho. Como poderias, há muitos anos, saber que eras apenas a lembrança de um estranho:

tu?

Lembras-te do carrinho de pau? Lembras-te do poço? O que havia debaixo da cama? O que estava escondido atrás dos cortinados?

Palavras é tudo o que tens. O carrinho de pau: palavras. O cão: palavras. O medo: palavras. Alguma vez tiveste outra coisa?


[Manuel António Pina]

Eu disse, «eu mordo» e tu pouco te ralaste; olhaste-me o sexo, condoído por tudo aquilo que eu desconhecia.



[Egon Schiele]

Alguma estética da premonição


Uma janela basta
Uma janela para contemplar
Uma janela para escutar
Uma janela
semelhante ao anel de um poço
a alcançar a terra na finitude do seu cerne
e a abrir para a imensidão desta bondade azul e repetitiva
uma janela a limar as pequenas mãos da solidão
com a nocturna benevolência
do perfume das estrelas prodigiosas
e de onde
é possível convocar o sol
para a alienação dos gerânios.
Uma janela bastar-me-á.
Eu venho da terra das bonecas
de debaixo das sombras das árvores de papel
no jardim de um livro ilustrado
das estações secas das experiências impotentes na amizade e no amor
nas vielas sujas da inocência
dos anos das letras pálidas do alfabeto cada vez maiores
atrás das carteiras da escola tuberculosa
do instante em que as crianças eram capazes de escrever “pedra”
no quadro
e os estorninhos partiam em furiosa debandada
da velha árvore.
Eu venho do meio das raízes de plantas carnívoras
e tenho o cérebro ainda a transbordar
com o guincho aterrorizado de uma borboleta
crucificada com alfinetes
num caderno.
Quando a minha confiança ficou suspensa do frágil fio da justiça
e por toda a cidade
iam despedaçando as lanternas do meu coração
quando me vendaram
com o lenço negro da Lei
e dos meus templos ansiosos do desejo
jorraram fontes de sangue
quando a minha vida se tornou nada
nada
senão o tiquetaque de um relógio,
descobri
que tenho
tenho
tenho de amar,
loucamente.
Uma janela bastar-me-á
uma janela para o momento da consciência
da observância
e do silêncio.
agora,
a pequena nogueira
está tão crescida que já consegue interpretar o muro
através das suas jovens folhas.
Pergunta ao espelho
o nome do redentor.
Não estará a terra fremente sob os teus pés mais sozinha que tu?
os profetas trouxeram a missão da destruição para o nosso século
não serão estas explosões consecutivas
e estas nuvens tóxicas
a reverberação dos versículos sagrados?
Tu,
camarada,
irmão,
confidente,
assim que chegares à lua
escreve a história dos massacres das flores.
Os sonhos precipitam-se sempre da sua ingénua altitude
e desfazem-se.
Cheiro o trevo de quatro folhas
que cresceu sobre o túmulo dos significados arcaicos.
Não seria a mulher
enterrada no sudário da expectativa e da inocência
a minha juventude?
Subirei os degraus da curiosidade
para saudar o bom Deus que passeia pelo telhado?
Sinto que o “tempo” passou
sinto que o “momento” é a minha parte das páginas da história
sinto que a “secretária” é uma distância fingida
entre as minhas madeixas
e as mãos deste triste desconhecido.
Fala comigo
O que haveria de querer de ti quem oferece a ternura de uma carne viva
senão o entendimento da sensação de existir?
Fala comigo
estou no refúgio da janela
tenho uma relação com o sol.
[Forough Farrokhzad]

My Childhood, ou as almofadas que desfazemos ainda tão precocemente



[Bill Douglas, 1972]

Ah o estrume da guerra


Neste tempo de espigas de trigo armadas
de pássaros armados
de cultura armada
e de religião armada
não se pode comprar pão
sem encontrar uma arma no interior
não se pode colher uma rosa do campo
sem que os seus espinhos nos arranhem o rosto
não se pode comprar um livro
que não vá explodir entre os nossos dedos.
[Nizzar Qabbani]

Os dias sucedendo-se

Foi assim:
estavas feliz, depois estavas triste,
depois voltavas a estar feliz, depois já não.
Foi-se prolongando.
Estavas inocente ou tinhas culpa.
Levava-se a cabo acções, ou não.
Por vezes falavas, noutras ficavas calado.
Em geral, parecia que estavas calado: o que haverias tu de dizer?
Agora está quase a terminar.
Como um amante, a tua vida dobra-se e beija a tua vida.
Não o faz em jeito de perdão —
entre vocês, nada há a perdoar —
mas com o simples acenar de cabeça de um padeiro
ao reparar que o pão concluiu a sua transformação.
Também comer é agora uma coisa para os outros apenas.
Não importa o que acharão de ti
ou dos teus dias: estarão enganados,
terão saudades da mulher errada, saudades do homem errado,
todas as histórias que contarem serão fábulas da sua própria lavra.
A tua história foi assim: estavas feliz, depois estavas triste,
dormias, acordavas.
Por vezes comias castanhas assadas, por vezes dióspiros.

[Jane Hirshfield]

Às vezes, digo, procuro o lugar onde desconstruí o teu nome até à ruína.




[Gilbert&George]