quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A pergunta de todos os dias:


Como sair daqui?" Perguntas bem, amigo.
Diógenes diria "à catanada, vivamente",
Lichtenberg "à gargalhada", se o conheço.
Thomas Bernhard proporia "num rectângulo
de tábuas" e Machado que o caminho de saída
se desdobra ao caminhar. Beckett é provável
que dissesse "rastejando".
Diderot aventaria
"pela rua do liceu", Tchekov "pela viela
mais escura, à tua esquerda". Séneca diria,
muito sonso, "pelo passeio das Virtudes",
Vaneigem pelo "jardim das Belas-Artes".
Bashô responderia (e eu com ele) "é muito cedo,
fica mais um pouco, ainda há vinho na garrafa".
[José Miguel Silva]

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Eu que te vi como a uma árvore, eu te fiz floresta:


É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.
II
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.
III
Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estilosa galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaivagem
se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.
Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida.

[Hilda Hilst]

A resolução para algumas palavras soçobra nas primeiras águas de Junho,


quando tudo ainda brada, com coragem e violenta insaciedade,
contra os enganos do mundo.




[Richard Prince]

O sempre distante


Amamos o que não conhecemos, o já perdido.
O bairro que já foi arredor.
Os antigos, que não podem já desiludir-nos,
porque são agora mito e esplendor.
Os seis volumes de Schopenhauer,
 que não acabaremos de ler.
A lembrança, não a leitura, da segunda parte do Quixote.
O Oriente, que não existe, é claro, para o afegão,
para o persa ou para o tártaro.
Os nossos ascendentes, com quem não seríamos capazes
de conversar um quarto de hora.
As cambiantes formas da memória,
que é feita de esquecimento.
As línguas que mal entendemos.
Um verso ou outro, latino ou saxónico, que
não é mais do que um hábito.
Os amigos que não podem falhar-nos,
porque estão mortos.
O ilimitado nome de Shakespeare.
A mulher que está a nosso lado e que é tão diferente.
O xadrez e a álgebra, que eu desconheço.

[Jorge Luís Borges]

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Uma daquelas histórias...


ou à janela no escuro a ouvir a coruja de cabeça vazia até ser difícil acreditar cada vez mais difícil de acreditar que alguma vez tivesses jurado amor a alguém ou alguém a ti até se tornar numa daquelas coisas que tu ias inventando para conter o vazio uma daquelas histórias para impedir que o vazio se viesse embrulhar num lençol.

[Samuel Beckett]

sábado, 29 de outubro de 2016

O tempo aprazado


Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados, gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissémos. Fizémos.
E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.

[Ingeborg Bachmann]

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

A flor antes de arrancada


Como a vida sem caderneta
como a folha lisa da janela
como a cadela violeta
- ou a violenta cadela?
Como o estar egípcio e mudado
no salão do navio de espelhos
como o nunca ter embarcado
ou só ter embarcado com velhos
Como ter-te procurado tanto
que haja qualquer coisa quebrada
como percorrer uma estrada
com memórias a cada canto
Como os lábios prendem o copo
como o copo prende a tua mão
como se o nosso louco amor louco
estivesse cheio de razão
E como se a vida fosse o foco
de um baço, lento projector
e nós dois ainda fôssemos pouco
para uma tempestade de côr
Um ao outro nos fôssemos pouco
meu amor meu amor meu amor

[Mário Cesariny]

domingo, 25 de setembro de 2016

Amigo Luar: (Ou estar numa cidade que não nos sabe o nome)


Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das
minhas mãos e brincar com elas ao orvalho
nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão
cedo e te ouço bater, chamar e bater, na fresta
da minha janela.
Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora,
no bico dos pés
para que eles te não sintam lá dentro,
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
bons dias, amigo.
[Carlos Oliveira]

domingo, 4 de setembro de 2016

Breve anotação:


Pensais, por acaso, que por crer
na imortalidade,
ela vos será dada?
Ela é obra da fé, do egoísmo,
da desolação.
Se existe, não importa que falte a crença:
respostas ignorantes são as humanas
se a morte interroga.

Andai lá com vossos ritos, oferendas aos deuses,
ou grandes monumentos funerários,
inflamadas preces, cega esperança.
Ou então aceitai o vazio que virá,
onde não há-de soprar sequer um vento estéril.
Aquilo que há-de vir será de todos,
pois não há mérito no nascimento,
nem nada que justifique a morte.

[Francisco Brines]

Haver um lugar entre o amor e a cobardia onde se possa respirar.





[Nobuyoshi Araki]

Eis os que sofrem da terrível era da desabitação


Deveria ser dado que morrêssemos
Com um amor ainda vivo em nós,
Como deveria ser dado a um pássaro
Morrer naturalmente em pleno voo.

[Nuno Rocha Morais]

Mestruation at forty, como ela lhe quis chamar.


I was thinking of a son.
The womb is not a clock
nor a bell tolling,
but in the eleventh month of its life
I feel the November
of the body as well as of the calendar.
In two days it will be my birthday
and as always the earth is done with its harvest.
This time I hunt for death,
the night I lean toward,
the night I want.
Well then—
speak of it!
It was in the womb all along.

I was thinking of a son ...
You! The never acquired,
the never seeded or unfastened,
you of the genitals I feared,
the stalk and the puppy’s breath.
Will I give you my eyes or his?
Will you be the David or the Susan?
(Those two names I picked and listened for.)
Can you be the man your fathers are—
the leg muscles from Michelangelo,
hands from Yugoslavia
somewhere the peasant, Slavic and determined,
somewhere the survivor bulging with life—
and could it still be possible,
all this with Susan’s eyes?

All this without you—
two days gone in blood.
I myself will die without baptism,
a third daughter they didn’t bother.
My death will come on my name day.
What’s wrong with the name day?
It’s only an angel of the sun.
Woman,
weaving a web over your own,
a thin and tangled poison.
Scorpio,
bad spider—
die!

My death from the wrists,
two name tags,
blood worn like a corsage
to bloom
one on the left and one on the right—
It’s a warm room,
the place of the blood.
Leave the door open on its hinges!

Two days for your death
and two days until mine.

Love! That red disease—
year after year, David, you would make me wild!
David! Susan! David! David!
full and disheveled, hissing into the night,
never growing old,
waiting always for you on the porch ...
year after year,
my carrot, my cabbage,
I would have possessed you before all women,
calling your name,
calling you mine. 


[Anne Sexton]

Não consintais que o musgo, o tempo, a sorte/ A memória sepultem do que eu sinto.





[Marquesa de Alorna/Jacques-Henri Lartigue]

sábado, 3 de setembro de 2016

Sobre o peso de um castelo


A minha mágoa é o meu castelo senhorial, que, tal como um ninho de águia, fica bem lá no alto, no cume das montanhas, entre as nuvens. Ninguém pode tomá-lo de assalto. De lá voo, descendo sobre a realidade e apanho a minha presa. Mas não fico lá em baixo – trago a minha presa para casa e essa presa é uma imagem que eu teço nas tapeçarias do meu castelo. Então, vivo como um morto. Tudo aquilo que é vivido mergulho-o no baptismo do esquecimento, para a eternidade da recordação. Todo o finito e casual é esquecido e apagado. Então, fico pensativamente sentado, como um velho homem grisalho, e explico as imagens em voz suave, quase sussurrante, e ao meu lado está sentada uma criança e escuta-me, apesar de se lembrar de tudo antes de eu lho contar.
[S. Kierkegaard]

sexta-feira, 29 de julho de 2016

E assim te recordo, entre os poemas possíveis e as manhãs de insónia.


Era o amor
que chegava e partia:
estarmos os dois
era um calor
que arrefecia
sem antes nem depois…
Era um segredo
sem ninguém para ouvir:
eram enganos
e era um medo,
a morte a rir
nos nossos verdes anos...

Teus olhos não eram paz,
não eram consolação.
O amor que o tempo traz
o tempo o leva na mão.

Foi o tempo que secou
a flor que ainda não era.
Como o Outono chegou
no lugar da Primavera!

No nosso sangue corria
um vento de sermos sós.
Nascia a noite e era dia,
e o dia acabava em nós…

O que em nós mal começava
não teve nome de vida:
era um beijo que se dava
numa boca já perdida.

[Pedro Tamen]

Tu que navegaste em terras de alcatrão e lodo...


Não durmo ainda
Só na cama
o tempo
ainda é meu
como a palavra

Discretamente
me agito
no colchão
Não penso em Deus
na morte
Imprimo
Aqueço-me
Escuto
conservo a posição
A Elsa dorme
Só na cama
o tempo ainda é dela
como um fruto

[António Reis]

At night, alone, I marry the bed.





[Anne Sexton/James Zucco]

Foram tempos...


Ao desejo, à
sombra aguda
do desejo, eu me 
abandono.
Meu ramo de coral,
meu areal, meu
barco de oiro, eu
me abandono.
Minha pedra de orvalho,
meu amor, meu punhal,
eu me abandono.
Minha lua queimada.
violada, colhe-me,
recolhe-me: eu me
abandono.
[Eugénio de Andrade]

terça-feira, 19 de julho de 2016

Mas e então o que faço com esta vida, Margarida?


Ai, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que farias tu com ela?
—Tirava os brincos do prego,
Casava c’um homem cego
E ia morar para a Estrela.

Mas Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que diria tua mãe?
— (Ela conhece-me a fundo.)
Que há muito parvo no mundo,
E que eras parvo também.

E, Margarida,
Se eu te desse a minha vida
No sentido de morrer?
— Eu iria ao teu enterro,
Mas achava que era um erro
Querer amar sem viver.

Mas, Margarida,
Se este dar-te a minha vida
Não fosse senão poesia?
— Então, filho, nada feito.
Fica tudo sem efeito.
Nesta casa não se fia.

[Álvaro de Campos]

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Era uma voz que cantava: «Your love leaves me cold»


You left me, sweet, two legacies,—
A legacy of love
A Heavenly Father would content,
Had He the offer of;
You left me boundaries of pain
Capacious as the sea,
Between eternity and time,
Your consciousness and me.
[Emily Dickinson]

Era uma voz que cantava: «Your love leaves me cold»


You left me, sweet, two legacies,—
A legacy of love
A Heavenly Father would content,
Had He the offer of;
You left me boundaries of pain
Capacious as the sea,
Between eternity and time,
Your consciousness and me.
[Emily Dickinson]

Que te esqueça que o bem terreno é lodo.



[Marquesa de Alorna/Pierre Auradon]

Um lugar quase a sós


É certo que desde sempre
Aos dias são sem amor
Cada aurora imperdoável
Cada carícia infame
E cada riso uma injúria
Ouço-me e tu me ouves
Uivar como um cão perdido
Contra a nossa solidão
O nosso amor precisa mais
De amor que a erva da chuva
Ele precisa de ser um espelho
[paul éluard]

És tu ao fundo das imagens, o teu rosto contra a almofada em sinal de esquecimento


Há certos versos - às vezes poemas inteiros -
que eu próprio não sei o que querem dizer. O que ignoro
retém-me ainda. E tu, tu tens razão em interrogar. Não interrogues.
Já te disse que não sei.
                                         Duas luzes paralelas
vindo do mesmo centro. O ruído da água
que cai, no inverno, da goteira a transbordar
ou o ruído de uma gota de água caindo
de uma rosa no jardim, regado há pouco,
devagar, devagarinho, uma tarde de primavera,
como o soluço de um pássaro. Não sei que quer dizer este ruído; contudo aceito-o.
As coisas que sei explico-tas,
sem negligência.
Mas as outras também acrescentam a nossa vida.
Eu olhava
o seu joelho dobrado, como ela dormia,
levantando o lençol -
não era apenas amor. Este ângulo
era o cume da ternura, e o cheiro
do lençol, a lavado e a primavera, completava
este inexplicável, que eu procurei,
em vão ainda, explicar-te.

[Yannis Ritsos]

Vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los.





[Marguerite Yourcenar]

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Nem sempre o dia acordar significa fresca novidade; às vezes é só um arrepio mais agudo


Veio-me esta manhã, pela primeira vez, a ideia de que o meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro, melhor conhecido por mim que a minha alma, não passa de um monstro dissimulado, que acabará por devorar o seu dono.
[Marguerite Yourcenar]

Mas a vida, Ainda Sem Nome, a vida faz minhas costas vergar de condolências





[The Repentant Magdalen (1870), Alphonse Cornet]

Em alguns capítulos menos felizes


Quando vivemos tanto que temos de pagar excesso
há algo no amor como uma luz suicida,
é talvez só isso,
havendo amores que duram algo menos que um beijo,
e beijos que duram algo mais que uma vida.

[Luis Rosales]

Para que conste:


Não tenho
      paciência para os outros
      Não sou
      cristã

      Ou
      não estou
      cristã

      Tenho
      uma crista

      Sou vaidosa
      como Eva
      Sou má

      Sou mazinha.

[Adília Lopes]

Que tal nos encontrarmos para um café tardio, um beijo tardio, tua mão tardia





Consolações ou os desertos


Frágil vagina semeada
pronta, útil, semanal
Nela se alargam as sedes
no meio
cresce
insondável
o vazio...
[Ana Paula Tavares]

Under all this dirt the floor is really very clean.


mirrorsandall:

[to reach]
Sophie Jodoin

[Lydia Davis/Sophie Jodoin]

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Os pés da intimidade


As barcas gritam sobre as águas.
Eu respiro nas quilhas.
Atravesso o amor, respirando.
Como se o pensamento se rompesse com as estrelas
brutas. Encosto a cara às barcas doces.
Barcas maciças que gemem
com as pontas da água.
Encosto-me à dureza geral.
Ao sofrimento, à ideia geral das barcas.
Encosto a cara para atravessar o amor.
Faço tudo como quem desejasse cantar,
colocado nas palavras.
Respirando o casco das palavras.
Sua esteira embatente.
Com a cara para o ar nas gotas, nas estrelas.
Colocado no ranger doloroso dos remos,
Dos lemes das palavras.

É o chamado rio tejo
pelo amor dentro.
Vejo as pontes escorrendo.
Ouço os sinos da treva.
As cordas esticadas dos peixes que violinam a água.
É nas barcas que se atravessa o mundo.
As barcas batem, gritam.
Minha vida atravessa a cegueira,
chega a qualquer lado.
Barca alta, noite demente, amor ao meio.
Amor absolutamente ao meio.
Eu respiro nas quilhas. É forte
o cheiro do rio tejo.

Como se as barcas trespassassem campos,
a ruminação das flores cegas.
Se o tejo fosse urtigas.
Vacas dormindo.
Poças loucas.
Como se o tejo fosse o ar.
Como se o tejo fosse o interior da terra.
O interior da existência de um homem.
Tejo quente. Tejo muito frio.
Com a cara encostada à água amarela das flores.
Aos seixos na manhã.
Respirando. Atravessando o amor.
Com a cara no sofrimento.
Com vontade de cantar na ordem da noite.

Se me cai a mão, o pé.
A atenção na água.
Penso: o mundo é húmido. Não sei
o que quer dizer.
Atravessar o amor do tejo é qualquer coisa
como não saber nada.
É ser puro, existir ao cimo.
Atravessar tudo na noite despenhada.
Na despenhada palavra atravessar a estrutura da água,
da carne.
Como para cantar nas barcas.
Morrer, reviver nas barcas.

As pontes não são o rio.
As casas existem nas margens coalhadas.
Agora eu penso na solidão do amor.
Penso que é o ar, as vozes quase inexistentes no ar,
o que acompanha o amor.
Acompanha o amor algum peixe subtil.

[Herberto Helder]

Coisas da natureza, com certeza.


Eu sei escrever.
Escrevo cartas, bilhetes, lista de compras,
composição escolar narrando o belo passeio
à fazenda de vovó que nunca existiu
Porque ela era pobre como Jó.
Mas escrevo também coisas inexplicáveis:
quero ser feliz, isto é amarelo.
E não consigo, isto é dor.
Vai-te de mim, tristeza, sino gago,
pessoas dizendo entre soluços:
"não aguento mais".
Moro num lugar chamado globo terrestre
onde se chora mais
que o volume das águas denominadas mar,
para onde levam os rios outro tanto de lágrimas.
Aqui se passa fome. Aqui se odeia.
Aqui se é feliz, no meio de invenções miraculosas.


[Adélia Prado]

Aquilo que somos não é aparente




não podemos explicar o sofrimento 
de onde procede este amor.

[Rui Pires Cabral/Yuri Lunkov]

domingo, 1 de maio de 2016

Minha mãe de luas e milagres


Ó mãe
aqui no teu colo,
tão bom como uma taça cheia de nuvens,
a mim, a tua criança gulosa
é me dado o teu peito,
o mar embrulhado em pele,
e os teus braços.
raízes cobertas de musgo
com novos rebentos a nascerem
para me fazerem cocegas até ao riso
Sim, estou casada com o meu ursinho
mas ele tem o teu cheiro
e também o meu.
O teu colar que eu toco
é todo olhos de anjo.
Os teus anéis que brilham
são como a lua no charco.
As tuas pernas que abanam para cima e para baixo,
as tuas queridas pernas cobertas de nylon
são os cavalos que eu cavalgarei
para a eternidade.
Ó mãe,
depois deste colo de infância
nunca irei avançar
para o mundo das pessoas grandes
como um estranho
uma invenção,
ou vacilar
quando alguém
for tão vazio como um sapato.
[Anne Sexton]

sábado, 23 de abril de 2016

Da sabedoria:


"New York
November 10, 1958
Dear Thom:
We had your letter this morning. I will answer it from my point of view and of course Elaine will from hers.
First — if you are in love — that’s a good thing — that’s about the best thing that can happen to anyone. Don’t let anyone make it small or light to you.
Second — There are several kinds of love. One is a selfish, mean, grasping, egotistical thing which uses love for self-importance. This is the ugly and crippling kind. The other is an outpouring of everything good in you — of kindness and consideration and respect — not only the social respect of manners but the greater respect which is recognition of another person as unique and valuable. The first kind can make you sick and small and weak but the second can release in you strength, and courage and goodness and even wisdom you didn’t know you had.
You say this is not puppy love. If you feel so deeply — of course it isn’t puppy love.
But I don’t think you were asking me what you feel. You know better than anyone. What you wanted me to help you with is what to do about it — and that I can tell you.
Glory in it for one thing and be very glad and grateful for it.
The object of love is the best and most beautiful. Try to live up to it.
If you love someone — there is no possible harm in saying so — only you must remember that some people are very shy and sometimes the saying must take that shyness into consideration.
Girls have a way of knowing or feeling what you feel, but they usually like to hear it also.
It sometimes happens that what you feel is not returned for one reason or another — but that does not make your feeling less valuable and good.
Lastly, I know your feeling because I have it and I’m glad you have it.
We will be glad to meet Susan. She will be very welcome. But Elaine will make all such arrangements because that is her province and she will be very glad to. She knows about love too and maybe she can give you more help than I can.
And don’t worry about losing. If it is right, it happens — The main thing is not to hurry. Nothing good gets away.
Love,
Fa"
[Carta de John Steinbeck para o seu filho]

I have a tender spot in my heart for cripples, bastards and broken things





[Paul Gauguin]

Xerazade


Levo já quase mil noites com fábulas
e a cabeça dói-me e tenho seca
a língua e esgotados os recursos,
a imaginação. E nem sequer
sei se me salvarei com as mentiras.
[amália bautista]

terça-feira, 19 de abril de 2016

Das grandes dádivas o que sobra é uma pequena pedra, pedra perpétua


dá-me algo mais que silêncio ou doçura
algo que tenhas e não saibas
não quero dádivas raras
dá-me uma pedra
não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz
dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
e se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!
[carlos edmundo de ory]

- Vinde - diz-me ela. - é preciso que a sombra do mistério esconda a minha fraqueza, vinde...





[citação de Sem manhã de Vivant Denon/ Walter Richard Sickert]

Das adivinhas


o que é impalpável
mas
pesa
o que é sem rosto
mas
fere
o que é invisível
mas
dói
[Orides Fontela]

Reúno as iniciais vazias do teu nome/ para te abraçar




antes que tenhas um sentido
                 antes que te evapores.

[António Ramos Rosa/ Vojtěch Preissig]

sexta-feira, 25 de março de 2016

Das sábias palavras


-Para que é que a vida serve?
-Para foder, que é muito bom. Para amar. E para morrer.

[Entrevista a Mário Cesariny]

domingo, 13 de março de 2016

Considerações Sobre o Pecado, o Sofrimento, a Esperança e o Verdadeiro Caminho


Duas tarefas para a primeira parte da vida: restringires cada vez mais o teu círculo e tornares sempre a verificar se não estás escondido algures fora do teu círculo.

[Franz Kafka]

sexta-feira, 4 de março de 2016

O nome com que te terei nomeado foi certamente menos oblíquo do que devia ser


Passado, portanto, o período do sangue derramado e dos coágulos, dos estrógenos, mais tarde quando o sono do meu filho me deixava o meu sono e a vigília em silêncio, pensei apenas que tivesses morrido como qualquer outra imagem volúvel, e nunca eterna.

[Fiama Hasse Pais Brandão]

Uma palavra cerrada: os corpos quando se unem



[Leonard Freed]

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Uma viagem chamada Sem Nome


dizes-me que a cama do teu quarto
está por fazer que saíste e todas
as lojas estavam fechadas hoje
é domingo que ontem sábado dissemos
muitas coisas muito amor gin beijos
se terei um pouco de pão ou de ternura
para te emprestar

[Pablo Garcia Casado]

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Do que a fome dizia «És covarde» e eu era.


Alimentava-me
dos rostos atirados pela rede dos nervos
negros e as veias
até à raíz cravada
da voz
- o terrífico
aparelho da fome. Toda a obra.
Dói.
A memória maneja a sua luz, os dedos,
a matéria.
É mais forte assim
queimada no écran onde brilha
o buraco da carne,
os espelhos
fechados
de repente vivos como oceanos sob
os antebraços, as mãos


[Herberto Helder]

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Organizar a solidão em três bocados para que se os coma melhor


Os amores
que não tive
(e foram
muitos)
moeram-me
o juízo


Também
não tive
muitos filhos
isto é
não tive
nenhum


Não
me queixo


O que
não foi
(e foi muito)
deu-me
muito trabalho
e muito


[Adília Lopes]

Até amanhã


O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada.
Foi o que escreveu Flaubert a uma sua amiga em 1852.
Li nas Cartas Exemplares organizadas por Duda Machado.
Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o nada existencial, o nada metafísico.
Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo.
Mas o nada do meu livro é nada mesmo.
É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc. etc.
O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras.
Fazer coisas desúteis.
O nada mesmo.
Tudo que use o abandono por dentro e por fora.

[Manoel de Barros]