sexta-feira, 13 de maio de 2016

Os pés da intimidade


As barcas gritam sobre as águas.
Eu respiro nas quilhas.
Atravesso o amor, respirando.
Como se o pensamento se rompesse com as estrelas
brutas. Encosto a cara às barcas doces.
Barcas maciças que gemem
com as pontas da água.
Encosto-me à dureza geral.
Ao sofrimento, à ideia geral das barcas.
Encosto a cara para atravessar o amor.
Faço tudo como quem desejasse cantar,
colocado nas palavras.
Respirando o casco das palavras.
Sua esteira embatente.
Com a cara para o ar nas gotas, nas estrelas.
Colocado no ranger doloroso dos remos,
Dos lemes das palavras.

É o chamado rio tejo
pelo amor dentro.
Vejo as pontes escorrendo.
Ouço os sinos da treva.
As cordas esticadas dos peixes que violinam a água.
É nas barcas que se atravessa o mundo.
As barcas batem, gritam.
Minha vida atravessa a cegueira,
chega a qualquer lado.
Barca alta, noite demente, amor ao meio.
Amor absolutamente ao meio.
Eu respiro nas quilhas. É forte
o cheiro do rio tejo.

Como se as barcas trespassassem campos,
a ruminação das flores cegas.
Se o tejo fosse urtigas.
Vacas dormindo.
Poças loucas.
Como se o tejo fosse o ar.
Como se o tejo fosse o interior da terra.
O interior da existência de um homem.
Tejo quente. Tejo muito frio.
Com a cara encostada à água amarela das flores.
Aos seixos na manhã.
Respirando. Atravessando o amor.
Com a cara no sofrimento.
Com vontade de cantar na ordem da noite.

Se me cai a mão, o pé.
A atenção na água.
Penso: o mundo é húmido. Não sei
o que quer dizer.
Atravessar o amor do tejo é qualquer coisa
como não saber nada.
É ser puro, existir ao cimo.
Atravessar tudo na noite despenhada.
Na despenhada palavra atravessar a estrutura da água,
da carne.
Como para cantar nas barcas.
Morrer, reviver nas barcas.

As pontes não são o rio.
As casas existem nas margens coalhadas.
Agora eu penso na solidão do amor.
Penso que é o ar, as vozes quase inexistentes no ar,
o que acompanha o amor.
Acompanha o amor algum peixe subtil.

[Herberto Helder]

Coisas da natureza, com certeza.


Eu sei escrever.
Escrevo cartas, bilhetes, lista de compras,
composição escolar narrando o belo passeio
à fazenda de vovó que nunca existiu
Porque ela era pobre como Jó.
Mas escrevo também coisas inexplicáveis:
quero ser feliz, isto é amarelo.
E não consigo, isto é dor.
Vai-te de mim, tristeza, sino gago,
pessoas dizendo entre soluços:
"não aguento mais".
Moro num lugar chamado globo terrestre
onde se chora mais
que o volume das águas denominadas mar,
para onde levam os rios outro tanto de lágrimas.
Aqui se passa fome. Aqui se odeia.
Aqui se é feliz, no meio de invenções miraculosas.


[Adélia Prado]

Aquilo que somos não é aparente




não podemos explicar o sofrimento 
de onde procede este amor.

[Rui Pires Cabral/Yuri Lunkov]

domingo, 1 de maio de 2016

Minha mãe de luas e milagres


Ó mãe
aqui no teu colo,
tão bom como uma taça cheia de nuvens,
a mim, a tua criança gulosa
é me dado o teu peito,
o mar embrulhado em pele,
e os teus braços.
raízes cobertas de musgo
com novos rebentos a nascerem
para me fazerem cocegas até ao riso
Sim, estou casada com o meu ursinho
mas ele tem o teu cheiro
e também o meu.
O teu colar que eu toco
é todo olhos de anjo.
Os teus anéis que brilham
são como a lua no charco.
As tuas pernas que abanam para cima e para baixo,
as tuas queridas pernas cobertas de nylon
são os cavalos que eu cavalgarei
para a eternidade.
Ó mãe,
depois deste colo de infância
nunca irei avançar
para o mundo das pessoas grandes
como um estranho
uma invenção,
ou vacilar
quando alguém
for tão vazio como um sapato.
[Anne Sexton]