sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Não tenho lugar para tantos lugares comuns


You remember too much, my mother said to me recently. Why hold onto all that?
And I said, Where can I put it down?


[Anne Carson]

As dificuldades das faculdades da memória


Poder e não poder
dizer o teu nome sem que me rebente 
dentro do estômago, dos intestinos, dos pulmões
a faca de infecções de que poderei morrer. 


[Joaquim Manuel Magalhães]

Datas


Passam-se as datas
Vão-se as emoções
Diluem-se os dias
Em contradições.

Agora se chora
Logo se ri,
Perdi o meu sonho
Perdendo-te a ti.

Mas as datas voltam
E os dias não,
Para que servem as datas
No meu coração.

[A. Neves Pinheiro]

Tão só que nem me ocorre a ideia de estar só


Esquecera aquela tarde de Agosto, há pouco mais de um ano, quando se tinham sentado sozinhos sobre a relva debaixo dos bordos, vendo o temporal a varrer o vale do rio e a subir na direcção deles, e então o tema fora a morte. E Port dissera: «A morte vem sempre a caminho mas o facto de não sabermos quando chegará parece afastar a natureza finita da vida. É essa terrível precisão que odiamos tanto. Mas, como não sabemos, pensamos que a vida é um poço inesgotável. No entanto, tudo acontece apenas um certo número de vezes, na verdade um número muito reduzido. Quantas vezes mais recordarás uma certa tarde da tua infância, uma tarde que é, tão profundamente, uma parte do teu ser que nem podes conceber a tua vida sem ela? Talvez mais quatro ou cinco vezes. Talvez nem tanto. Quantas vezes mais contemplarás a lua cheia a erguer-se? talvez vinte. E, no entanto, tudo parece ilimitado.

[Paul Bowles]

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Ensinamento


Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

[Adélia Prado]

O poema não espera por ninguém


Falámos tanto ou tão pouco que de repente o silêncio que se fez
foi essa patada no peito, de que guardaremos a marca quando
agora choramos, quando estendemos as mãos carregadas de 
dedos mortos, sonhámos tanto que mais de uma vez tivemos de
matar, que mais de uma vez nos estoiraram os olhos sob a pólvora
das lágrimas e as tuas mãos voaram estilhaçadas, jogámos tanto
que para não nos perdermos arriscámos tudo, até tornar a
morte uma coisa nossa, tão nossa, que é ela que anda agora vestida
com a nossa pele e os nossos ossos, escorregando pelas paredes
de cabeça para baixo ou subindo pelo interior dos bicos, passando
de cadafalso em cadafalso, com os lábios furados pelas unhas, com
a cintura roxa das dentadas da noite, da miséria dos dias.
Roda de todas as torturas e de todas as seduções, deixaste de girar.
Estás agora aqui, partida, abandonada no próprio local do sangue.
Transportada de homem em homem através dos séculos, foste há
pouco deposta pelo último homem, esse que desapareceu, ia de lado,
com os joelhos duros cobertos de água e as mãos cem metros à sua
frente em sinal de maldade. Corpo a corpo foste gasta até à última
noite e até à última estrela, palavra a palavra foste sugada e bebida e
de todos os lados sempre novas sempre novas bocas chegavam para te
sugar e beber. Ficaste um gesto que perseguimos à dentada e acabámos
por matar. Vede: a destruição prossegue docemente. Restam apenas,
aqui e além, algumas cidades com os seus milhões de almas e nada mais.
Pequenas marcas de sangue, cada vez mais vivas, assinalam a nossa
passagem entre as agulhas de carvão do tempo. Canhões ocupam a entrada
da luz. E de norte a sul, de leste a oeste, de criança para criança,
aguarda-se o sinal de fogo.
Não estranheis os sinais, não estranheis este povo que oculta a
cabeça nas entranhas dos mortos. Fazei todo o mal que puderdes
e passai depressa.
[António José Forte]

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Sozinha, no amor.


  Verdes, cor-de-rosa, aneladas, desenhadas. De elas se diz que têm relações consigo mesmas e vêmo-las no espasmo.
  Ou rígidas como um dedo conseguem beber na fonte das rosas. São aparentadas com as rosas, o alecrim? e a pereira.
  Consideram-nas apenas sonhos, representação dos pecados dos homens.

  Mas eu, em miúda, à luz do sol e da lua, acredito nelas, sei que realmente existem.
  Vi-as abrir os lábios, negros como a noite, a dentadura de ouro, atrás de uma amêndoa, um pedacinho de abóbora;

          enfrentar a própria linha, brincando e brigando; e sozinha no amor, retorcer-se até morrer.


[marosa di giorgio]

sexta-feira, 9 de outubro de 2015