sábado, 23 de dezembro de 2017

Não se mate


Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.
Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.
O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.
Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.
[Carlos Drummond de Andrade]

Eu fiz por dançar no teu compasso; mas perdi-lhe o jeito de tanto empurrão

 
duele pero nos mantiene vivos
que el olor salvaje del recuerdo
muerda de tanto en tanto el corazón
[ Rocío Wittib]

sábado, 16 de dezembro de 2017

I walk a little faster


Falas verdade , amigo Tristão. Sinto como tu que o sortilégio chegou ao fim.
O nosso amor continua, como dizes mais forte que nunca, mas cessou de ser uma coacção mágica, uma força exterior, invencível e fatal. Vamos amar-nos agora como os 
outros homens e as outras mulheres desde que o mundo é mundo; ei-nos restituídos à condição de mortais. Doravante estaremos sujeitos aos caprichos do destino, à flutuação dos nossos desejos a todos os movimentos contrários, a todos os remorsos das nossas vontades. Daí vem que a esta hora, sem cessarmos de nos amar, estaremos a conceber o projecto de nos separarmos.

[Tristão e Isolda]

Desarticular o teu nome que em minha boca é um néctar cheio de veneno

crumbargento:
“A Candle for the Devil - Eugenio Martí - 1973 - Spain
”




De ti tive sempre um lugar onde matar a sede e morrer de sede


Fitei intensamente a lua:
era o teu rosto
na noite do desespero.
de ti tive abundância
em tempo de penúria.
pude viver em graça
no abrigo que me davas.

ai, a saudade dessa estima antiga!
doce era ser sob a tua sombra:
errava no verde prado
perto da fonte de água fresca!

[ibn 'ammâr]

domingo, 10 de dezembro de 2017

Os teus olhos, sempre os teus olhos


I am delicate. You’ve been gone. 
The losing has hurt me some, yet 
I must bend for you. See me arch. I’m turned on.

[Anne Sexton]

Mira que si te quise, fué por el pelo. Ahora que estás pelona, ya no te quiero


Las miro o mejor dicho no las miro porque yo cuando camino no miro nada ni a nadie, sino que las intuyo o las veo de alguna manera, y sólo yo sé cuánto y cómo me fascinan los rostros bellos, y qué culpable me siento, inexplicablemente, de andar con mi ropa vieja, toda yo
desarreglada, despeinada, triste, asexuada, cargada de libros, con mi expresión tensa, dolorida, neurótica, obscura, y mi ropa ambigua, mis zapatos polvorientos, en medio de mujeres como flores, como luces, como ángeles.


[Alejandra Pizarnik]

Where I find you so slowly


I set my love upon you. Much too high.
In the sky   

arrange my burial.

[Marina Tsvetaeva]

Rejoice with those who rejoice, weep with those who weep.

 
[Romans 12:15 - 18 ESV/ John Heywood]




Tenho uma cisma aqui trancada





Esse poema, é sobre o quê?

É sobre os problemas de auto-estima das bonecas insufláveis.
É sobre a vantagem das navalhas em relação às maquinas de barbear.
É sobre os efeitos da nicotina no acasalamento de lagartixas.
É sobre Super Bock, Famous Grouse e, em dias melhores, Glenlivet.
É sobre as ruas de Lisboa quando as acho suficientemente tristes.
É sobre o nada, minha única «matéria».
É sobre tremoços, amendois e Domenico Scarlatti.
É sobre as alterações climatéricas no Bairro da Serafina.
É sobre gatos mortos e outros que ainda não morreram.
É sobre os seios de Jeanne Hébuterne e as mãos de Glenn Glould.
É sobre o bife de lombo à portuguesa do Trivial e os filetes do polvo do Apuradinho.
É sobre política internacional, obviamente.
É sobre a cona da tua mãe, leitor.
É sobre Copenhaga, Barcelona, Paris e Celorico da Beira.
É sobre cáries dentárias, fundamentalmente.
É sobre coisas que preferia ter calado.

[Manuel de Freitas]

Mas o amor, que foi sempre outra coisa, há-de trazer-nos à boca o exacto lugar onde morreremos


não te esqueças de me visitar. traz-me as fotografias de Veneza e aquele poema que me escreveste quando o nosso amor ainda era o que de mais magnífico acontecera nas nossas vidas e no mundo.
havemos de nos sentar nas mesmas cadeiras como se fossem as mesmas manhãs de sábado. havemos de olhar os mesmos telhados, divagar sobre a eternidade dos gestos e jurar comovidamente que as nossas almas se tocaram de uma maneira única e inesquecível.
eu hei-de esconder-te a minha interminável solidão e tu hás-de demonstrar-me, muito inocentemente, nas tuas palavras tão cheias de vida e de juventude, como a morte nos descobre mesmo nos lugares mais altos.

[gil t. sousa]

É dançar, salvar-se? Sim, é dançar de cabeça para baixo

 
[Herberto Helder]





Se me haveis mordido de insaciedade



- Nenhum de vós! Seja qual for o céu
que vos encobre! Seja qual for a Idade
que vos deu! Já nenhum me fascina,
ó seres de pedra e mármore e cristal!
Não estremeço de espanto ou de beleza.
Se tudo o que me coube foi morrer,
espero da Esperança a glória do irreal.

Se vos amo, não sei se vos cantei.
Se vos deifiquei, já vos esqueço.
Se vos medi para além do que vos meço,
para aquém vos deixei.


Como erguer-vos acima dos infernos
de pó e cinza que a paixão criou?
E chamei-lhes eternos!
Que rio de miséria os afogou?

Nenhum de vós! Se estive de joelhos,
hoje levanto o olhar. O que de vós rasteja
sobre a Terra, a podridão do instante,
a perdição dos vícios, a razão de cantar,
está nas palavras presas, nas cadeias
que os séculos soluçam, a arrastar...

Nenhum de vós agora me escraviza.
Tão pequenos, pequenos almocreves!
Crianças das extáticas, divisas
e de infinitos breves!

Nenhum de vós! Não sei que epopeias
e astros e mansões
vos erguestes acima das areias!

Arrepiem-se as trevas e o silêncio
Do desprezo que alargo,
dos nomes que soterro, do amargo
anel de ferro que os recolhe.

Nenhum de vós, nenhum merece
que vos olhe!

Quero os cânticos só para além de mim,
de além dos cataclismos.
De além morte, de além caudais
de mundos em fusão.

Quero ver Deus criar de novo a vida;
uma nova manhã, um sabor novo a relva,
a maresia, à primeira canção...
Os passos do amor na noite fresca,
a primeira e imprecisa solidão.

Quero ver Deus, terrível, frente a frente.
Ver os primeiros lagos, ver os primeiros monstros,
ver-me de onde é que eu vinha.

Quero ver Deus criar de novo a Morte
e que a primeira morte seja a minha.

[Natércia Freire]

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Que eu encontro meu corpo como uma estátua aonde pombas vêm adormecer


Não tardará a chegar ao fim
este agosto que te viu passar com a luz
a teus pés. Somos eternos, dizias.
Eu pensava antes na danação
da alma ao faltar-lhe o alimento
que lhe trazias. Agora a cidade vive
do peso incomensuravelmente morto
dos dias sem a tua presença. Deixo
a mão correr sobre o papel tentando
captar o eco de uma palavra,
um sinal de quem em qualquer parte
cintila, e confia ao vento o segredo
da nossa tão precária eternidade.
[Eugénio de Andrade]

What she knew


People did not know what she knew, that she was not really a woman but a man, often a fat man, but more often, probably, an old man. The fact that she was an old man made it hard for her to be a young woman. It was hard for her to talk to a young man, for instance, though the young man was clearly interested in her. She had to ask herself, Why is this young man flirting with this old man?

[Lydia Davis]

domingo, 16 de julho de 2017

A longitude de um coração em delírio


Regresso devagar ao teu 
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que 
não é nada comigo. Distraído percorro 
o caminho familiar da saudade, 
pequeninas coisas me prendem, 
uma tarde num café, um livro. Devagar 
te amo e às vezes depressa, 
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo, 
regresso devagar a tua casa, 
compro um livro, entro no 
amor como em casa. 


[Manuel António Pina]

I don't do too much talking these days


carmen-garcia:
“ Revelado manual B&N
(9/6/2014)
ph:Carmen García
”
[Nico]



Quando a perda nos alivia mais do que fere;


no meio da confusão alguém partiu sem se despedir. foi triste. se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece num baile de carnaval — uma pessoa perde-se da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. é melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.
creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

[rubem braga]

terça-feira, 4 de julho de 2017

Eis o derradeiro sinal:


Vou esvaziando os copos
e começo a compilar beijos,
como quem junta, à pressa, moedas caídas pelo chão:
somos todas putas, rapaz,
com ou sem vodka.

[Golgona Anghel]

domingo, 11 de junho de 2017

A ferida que alguém hauriu como a um filho morto


Mais do que isto, sim 
Mais do que isto, podemos ficar caladas. 
Com um olhar parado
 como aquele dos mortos. 
Podemos fixar durante longas horas
 o fumo a sair de um cigarro 
a forma de uma chávena
 a flor esbatida no tapete
 o slogan a desaparecer na parede. 
Podemos afastar as cortinas 
com dedos enrugados e ver
 a chuva cair fortemente no beco 
uma criança parada na porta
 com um colorido papagaio de papel 
uma carripana a sair da praça vazia
 numa pressa barulhenta. 
Podemos estar ali paradas 
Ao pé das cortina – cegas, surdas 
Podemos gritar com uma voz bastante falsa, bastante remota
 “eu amo” 
 Nos braços dominadores de um homem
 podemos ser uma saudável e bonita mulher. 
Com um corpo como uma toalha de mesa de cabedal 
com dois grandes e duros peitos, 
na cama com um bêbedo, um louco, um vadio 
podemos manchar a inocência do amor. 
 Podemos degradar com astúcia 
todos os mistérios profundos 
podemos continuar a resolver palavras cruzadas
 a descobrir alegremente as respostas sem sentido
 respostas sem sentido, sim – de cinco ou seis letras. 
Com cabeça inclinada, podemos ajoelhar-nos uma vida inteira perante a grade dourada de um túmulo
 podemos encontrar deus numa sepultura sem nome 
podemos trocar a nossa fé por uma moeda sem valor 
podemos apodrecer no canto duma mesquita 
como um velho recitador de orações de peregrinos.
 Podemos ser constante como o zero 
Nas somas, subtracções, ou multiplicações. 
Podemos pensar nos teus - mesmo nos teus – olhos 
Como buracos sem brilho nuns sapatos velhos. 
Podemos secar-nos numa bacia, como água. 
 Com vergonha podemos esconder a beleza de um momento juntos
 no fundo de um baú 
como uma velha e estranha foto, 
na moldura vazia de um dia podemos mostrar 
a imagem duma execução, duma crucificação, ou de um martírio, 
podemos tapar as rachas na parede com uma máscara
 podemos lidar com imagens mais ocas do que essas. 
 Podemos ser como bonecas de corda 
e olhar para o mundo como olhos de vidro
 e jazer durante anos entre rendas e lantejoulas 
o corpo recheado de palha
 dentro de uma caixa de feltro,
 e a cada toque de luxúria 
gritar sem nenhuma razão 
“Ah, que feliz sou!”

[Forough Farrokhzad]

Da minha fé no mundo sei o amor distante com que amo aqueles que erram.



[Jorge de Sena]

Como eu já fui acesa: eis o fantasma que nos devora a casa


Tenho um maço de cartas,
tenho um maço de memórias.
Eu podia cortar os olhos a ambas.
Eu podia usa-las como um avental de retalhos.
Podia metê-las na máquina de lavar, na de secar,
se calhar parte da dor desapareceria como sujidade?
Se calhar deitando-a pelo triturador eu poderia triturar a perda.
Além disso – que pechincha – sem telefonemas caros.
sem viagens demoradas em aviões no nevoeiro.
Sem o riso maníaco ou bênção de um padre fora-do-baralho.
Esse padre provavelmente ainda está a flutuar numa almofada de nevoeiro.
Abençoando-nos, abençoando-nos.
Tenho que te abençoar, perdido,
aqui sentada com a minha alma trapalhona?
O tempo de propaganda acabou.
Sento-me aqui no espigão da verdade.
Ninguém para odiar senão o peixe esguio da memória
que desliza para dentro e para fora do meu cérebro
Ninguém para odiar senão o toque agudo da minha camisa de dormir
roçando o meu corpo como uma luz que se apagou.
Lembra-me o beijo que inventámos, línguas como poemas,
encontrando-se, regressando, convidando, provocando uma febre de necessidade.
Risos, mapas, cassetes, toque a cantar o seu caminho –
tudo para ser partido e posto num cofre estanque
Os mortos monótonos entopem-me e há apenas
preto ornado a preto que verte do cofre.
Preciso de o estripar e depois colocar o coração, as pernas,
de dois que foram um sobre um grande monte de lenha
e acendo-o, como eu já fui acesa e deixo-o rodopiar
em chamas chegando ao céu
Fazendo-o perigoso com o seu vermelho.

[Anne Sexton]

O corpo vibrátil do peixe, resvalando em meu sexo



quarta-feira, 10 de maio de 2017

A letra inacabada

Fala-se de amor para falar de muitas
coisas que entretanto nos sucedem.
Para falar do tempo, para falar do mundo
usamos o vocabulário preciso
que nos dá o amor.
Eu amo-te. Quer dizer: eu conheço melhor
as estradas que servem o meu território.
Quer dizer: eu estou mais acordado,
não me enredo nas silvas, não me enredo,
não me prendo nos cardos, não me prendo.
Quer também dizer: amar-te-ei
cada dia mais, estarei cada dia
mais acordado. Porque este amor não pára.
E para falar da morte; da enorme
definitiva irremediável morte,
do carro tombado na valeta
sacudindo uma última vez (fragilidade)
as rodas acendedoras de caminhos
- eu lembraria que o amor nos dá
uma forma difícil de coragem,
uma difícil, inteira possessão
de nós próprios, quando aveludada
a morte surge e nos reclama.
Porque eu amo-te, quer dizer, eu estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.
Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.
[Fernando Assis Pacheco]

terça-feira, 28 de março de 2017

Ou a medusa


Longe nesta língua de terra de crateras pedregosas,
Olhos revolvidos por paus brancos,
Ouvidos que absorvem as incoerências do mar,
Albergas a tua cabeça sem vida ─ bola de Deus,
Lente de misericórdias,
Os teus parasitas
Fortalecem as suas células descontroladas à sombra da minha
quilha,
Forçando-me como fazem os corações,
Estigma vermelho mesmo no centro,
Cavalgam na maré agitada até ao ponto mais próximo da partida,
Arrastando os seus cabelos de Jesus,
Será que escapei, pergunto-me.
O meu pensamento vai no vento ter contigo
Meu velho cordão umbilical cheio de lapas, cabo do Atlântico,
Que parece manter-se em miraculoso estado remendado.
Em qualquer caso está sempre lá,
A trémula respiração no fim da linha,
Curva de água crescendo
Diante da minha vara de água, deslumbrante e grata,
Tocando e sorvendo.
Não te chamei.
Não te chamei mesmo.
Todavia, todavia
Tu navegaste até mim por sobre o mar
Gorda e vermelha, placenta
Inibindo a excitação dos amantes.
Brilho de cobra de capelo
Retirando a respiração às campainhas do sangue
Da fúchsia. Eu não podia tomar alento,
Morta e sem dinheiro,
Demasiadamente exposta, como numa radiografia.
Quem pensas que és?
A hóstia da comunhão? A Maria chorona?
Não vou aceitar nenhum bocado do teu corpo,
Garrafa onde vivo,
Sinistro Vaticano.
Estou farta de sal quente.
Vedes como eunucos, os teus desejos
Silvam nos meus pecados.
Fora, fora, tentáculos de enguia!
Não há nada entre nós.
[sylvia plath]

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Duas vezes


É assim, amiga. Encontramo-nos
quando calha nos bares de antigamente,
deixando que sobre o tampo azul
das mesas volte a pousar
um baço cemitério de garrafas.


Constatamos o pior, os seus aspectos.
Corpos e livros que foram ficando
por ler na voracidade da noite de Lisboa.
De facto, crescemos em alcoolémia,
acordamos tarde, em pânico,
e perdemos os dias e os dentes
com uma espécie de resignação.
Não temos, ao que parece, serventia.


Sorrimos um pouco, ao terceiro
gin, como quem renasce para a morte,
seus gestos de ternura ou de exuberância.
Talvez tenhamos calculado mal
o ângulo da queda, esta vitória
sem nobreza dos venenos todos.


Mas agora é tarde. Tudo fechou
para nós, para sempre. O amor,
o desejo, até o onanismo da destruição.
Antes de procurares a esmola
do último táxi, fica esta imagem
parada, a desvanecer-se
no frio mais frio da memória:


não dois corpos sentados a trocarem
medo, cigarros e palavras póstumas,
mas duas vezes nada, ninguém,
o silêncio da noite destronando
as cadeiras onde por razão nenhuma
nos sentámos. Os anos, amiga, passaram.

[Manuel de Freitas]

Um dia quente, e as relembranças que dele sempre renascem.



[A. P. Levitin]

Ah e a saída, como é paradisíaca...


Estou convencida de que 
faz parte integrante da vida na terra 
sermos magoados
naquilo a que somos mais sensíveis,
no que nos é mais insuportável:
o essencial 
é como nós saímos disso.

[Rahel Varnhagen]

Ter amado Aodh num sofá de riscas, e no entanto!



[The roughness  in back of throat, Agosto 2016]

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Amar com unhas muito compridas


Porque eu amo-a extraordinariamente. Tenho-a amado com cólera - e nisto não há contradição. - Amo-a se não me incomoda - amo-a se meu fantasma, que a detesta, não quer ser livre e só se não se põe a pregar. Amo-a com contradições, com discussões, com momentos de sinceridade, de dúvida e de exaspero.

[Raul Brandão]

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Alguma redundância, sim, pó - com certeza.


À infância só se chega partindo de muito longe. A infância é aí, onde partes, não onde chegas. Olha para trás. Que vês? Nada. A memória é a única coisa que verdadeiramente te pertence, mas lembras-te de um estranho. Como poderias, há muitos anos, saber que eras apenas a lembrança de um estranho:

tu?

Lembras-te do carrinho de pau? Lembras-te do poço? O que havia debaixo da cama? O que estava escondido atrás dos cortinados?

Palavras é tudo o que tens. O carrinho de pau: palavras. O cão: palavras. O medo: palavras. Alguma vez tiveste outra coisa?


[Manuel António Pina]

Eu disse, «eu mordo» e tu pouco te ralaste; olhaste-me o sexo, condoído por tudo aquilo que eu desconhecia.



[Egon Schiele]

Alguma estética da premonição


Uma janela basta
Uma janela para contemplar
Uma janela para escutar
Uma janela
semelhante ao anel de um poço
a alcançar a terra na finitude do seu cerne
e a abrir para a imensidão desta bondade azul e repetitiva
uma janela a limar as pequenas mãos da solidão
com a nocturna benevolência
do perfume das estrelas prodigiosas
e de onde
é possível convocar o sol
para a alienação dos gerânios.
Uma janela bastar-me-á.
Eu venho da terra das bonecas
de debaixo das sombras das árvores de papel
no jardim de um livro ilustrado
das estações secas das experiências impotentes na amizade e no amor
nas vielas sujas da inocência
dos anos das letras pálidas do alfabeto cada vez maiores
atrás das carteiras da escola tuberculosa
do instante em que as crianças eram capazes de escrever “pedra”
no quadro
e os estorninhos partiam em furiosa debandada
da velha árvore.
Eu venho do meio das raízes de plantas carnívoras
e tenho o cérebro ainda a transbordar
com o guincho aterrorizado de uma borboleta
crucificada com alfinetes
num caderno.
Quando a minha confiança ficou suspensa do frágil fio da justiça
e por toda a cidade
iam despedaçando as lanternas do meu coração
quando me vendaram
com o lenço negro da Lei
e dos meus templos ansiosos do desejo
jorraram fontes de sangue
quando a minha vida se tornou nada
nada
senão o tiquetaque de um relógio,
descobri
que tenho
tenho
tenho de amar,
loucamente.
Uma janela bastar-me-á
uma janela para o momento da consciência
da observância
e do silêncio.
agora,
a pequena nogueira
está tão crescida que já consegue interpretar o muro
através das suas jovens folhas.
Pergunta ao espelho
o nome do redentor.
Não estará a terra fremente sob os teus pés mais sozinha que tu?
os profetas trouxeram a missão da destruição para o nosso século
não serão estas explosões consecutivas
e estas nuvens tóxicas
a reverberação dos versículos sagrados?
Tu,
camarada,
irmão,
confidente,
assim que chegares à lua
escreve a história dos massacres das flores.
Os sonhos precipitam-se sempre da sua ingénua altitude
e desfazem-se.
Cheiro o trevo de quatro folhas
que cresceu sobre o túmulo dos significados arcaicos.
Não seria a mulher
enterrada no sudário da expectativa e da inocência
a minha juventude?
Subirei os degraus da curiosidade
para saudar o bom Deus que passeia pelo telhado?
Sinto que o “tempo” passou
sinto que o “momento” é a minha parte das páginas da história
sinto que a “secretária” é uma distância fingida
entre as minhas madeixas
e as mãos deste triste desconhecido.
Fala comigo
O que haveria de querer de ti quem oferece a ternura de uma carne viva
senão o entendimento da sensação de existir?
Fala comigo
estou no refúgio da janela
tenho uma relação com o sol.
[Forough Farrokhzad]

My Childhood, ou as almofadas que desfazemos ainda tão precocemente



[Bill Douglas, 1972]

Ah o estrume da guerra


Neste tempo de espigas de trigo armadas
de pássaros armados
de cultura armada
e de religião armada
não se pode comprar pão
sem encontrar uma arma no interior
não se pode colher uma rosa do campo
sem que os seus espinhos nos arranhem o rosto
não se pode comprar um livro
que não vá explodir entre os nossos dedos.
[Nizzar Qabbani]

Os dias sucedendo-se

Foi assim:
estavas feliz, depois estavas triste,
depois voltavas a estar feliz, depois já não.
Foi-se prolongando.
Estavas inocente ou tinhas culpa.
Levava-se a cabo acções, ou não.
Por vezes falavas, noutras ficavas calado.
Em geral, parecia que estavas calado: o que haverias tu de dizer?
Agora está quase a terminar.
Como um amante, a tua vida dobra-se e beija a tua vida.
Não o faz em jeito de perdão —
entre vocês, nada há a perdoar —
mas com o simples acenar de cabeça de um padeiro
ao reparar que o pão concluiu a sua transformação.
Também comer é agora uma coisa para os outros apenas.
Não importa o que acharão de ti
ou dos teus dias: estarão enganados,
terão saudades da mulher errada, saudades do homem errado,
todas as histórias que contarem serão fábulas da sua própria lavra.
A tua história foi assim: estavas feliz, depois estavas triste,
dormias, acordavas.
Por vezes comias castanhas assadas, por vezes dióspiros.

[Jane Hirshfield]

Às vezes, digo, procuro o lugar onde desconstruí o teu nome até à ruína.




[Gilbert&George]