quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A pergunta de todos os dias:


Como sair daqui?" Perguntas bem, amigo.
Diógenes diria "à catanada, vivamente",
Lichtenberg "à gargalhada", se o conheço.
Thomas Bernhard proporia "num rectângulo
de tábuas" e Machado que o caminho de saída
se desdobra ao caminhar. Beckett é provável
que dissesse "rastejando".
Diderot aventaria
"pela rua do liceu", Tchekov "pela viela
mais escura, à tua esquerda". Séneca diria,
muito sonso, "pelo passeio das Virtudes",
Vaneigem pelo "jardim das Belas-Artes".
Bashô responderia (e eu com ele) "é muito cedo,
fica mais um pouco, ainda há vinho na garrafa".
[José Miguel Silva]

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Eu que te vi como a uma árvore, eu te fiz floresta:


É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.
II
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.
III
Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estilosa galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaivagem
se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.
Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida.

[Hilda Hilst]

A resolução para algumas palavras soçobra nas primeiras águas de Junho,


quando tudo ainda brada, com coragem e violenta insaciedade,
contra os enganos do mundo.




[Richard Prince]

O sempre distante


Amamos o que não conhecemos, o já perdido.
O bairro que já foi arredor.
Os antigos, que não podem já desiludir-nos,
porque são agora mito e esplendor.
Os seis volumes de Schopenhauer,
 que não acabaremos de ler.
A lembrança, não a leitura, da segunda parte do Quixote.
O Oriente, que não existe, é claro, para o afegão,
para o persa ou para o tártaro.
Os nossos ascendentes, com quem não seríamos capazes
de conversar um quarto de hora.
As cambiantes formas da memória,
que é feita de esquecimento.
As línguas que mal entendemos.
Um verso ou outro, latino ou saxónico, que
não é mais do que um hábito.
Os amigos que não podem falhar-nos,
porque estão mortos.
O ilimitado nome de Shakespeare.
A mulher que está a nosso lado e que é tão diferente.
O xadrez e a álgebra, que eu desconheço.

[Jorge Luís Borges]