sexta-feira, 29 de julho de 2016

E assim te recordo, entre os poemas possíveis e as manhãs de insónia.


Era o amor
que chegava e partia:
estarmos os dois
era um calor
que arrefecia
sem antes nem depois…
Era um segredo
sem ninguém para ouvir:
eram enganos
e era um medo,
a morte a rir
nos nossos verdes anos...

Teus olhos não eram paz,
não eram consolação.
O amor que o tempo traz
o tempo o leva na mão.

Foi o tempo que secou
a flor que ainda não era.
Como o Outono chegou
no lugar da Primavera!

No nosso sangue corria
um vento de sermos sós.
Nascia a noite e era dia,
e o dia acabava em nós…

O que em nós mal começava
não teve nome de vida:
era um beijo que se dava
numa boca já perdida.

[Pedro Tamen]

Tu que navegaste em terras de alcatrão e lodo...


Não durmo ainda
Só na cama
o tempo
ainda é meu
como a palavra

Discretamente
me agito
no colchão
Não penso em Deus
na morte
Imprimo
Aqueço-me
Escuto
conservo a posição
A Elsa dorme
Só na cama
o tempo ainda é dela
como um fruto

[António Reis]

At night, alone, I marry the bed.





[Anne Sexton/James Zucco]

Foram tempos...


Ao desejo, à
sombra aguda
do desejo, eu me 
abandono.
Meu ramo de coral,
meu areal, meu
barco de oiro, eu
me abandono.
Minha pedra de orvalho,
meu amor, meu punhal,
eu me abandono.
Minha lua queimada.
violada, colhe-me,
recolhe-me: eu me
abandono.
[Eugénio de Andrade]

terça-feira, 19 de julho de 2016

Mas e então o que faço com esta vida, Margarida?


Ai, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que farias tu com ela?
—Tirava os brincos do prego,
Casava c’um homem cego
E ia morar para a Estrela.

Mas Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que diria tua mãe?
— (Ela conhece-me a fundo.)
Que há muito parvo no mundo,
E que eras parvo também.

E, Margarida,
Se eu te desse a minha vida
No sentido de morrer?
— Eu iria ao teu enterro,
Mas achava que era um erro
Querer amar sem viver.

Mas, Margarida,
Se este dar-te a minha vida
Não fosse senão poesia?
— Então, filho, nada feito.
Fica tudo sem efeito.
Nesta casa não se fia.

[Álvaro de Campos]

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Era uma voz que cantava: «Your love leaves me cold»


You left me, sweet, two legacies,—
A legacy of love
A Heavenly Father would content,
Had He the offer of;
You left me boundaries of pain
Capacious as the sea,
Between eternity and time,
Your consciousness and me.
[Emily Dickinson]

Era uma voz que cantava: «Your love leaves me cold»


You left me, sweet, two legacies,—
A legacy of love
A Heavenly Father would content,
Had He the offer of;
You left me boundaries of pain
Capacious as the sea,
Between eternity and time,
Your consciousness and me.
[Emily Dickinson]

Que te esqueça que o bem terreno é lodo.



[Marquesa de Alorna/Pierre Auradon]

Um lugar quase a sós


É certo que desde sempre
Aos dias são sem amor
Cada aurora imperdoável
Cada carícia infame
E cada riso uma injúria
Ouço-me e tu me ouves
Uivar como um cão perdido
Contra a nossa solidão
O nosso amor precisa mais
De amor que a erva da chuva
Ele precisa de ser um espelho
[paul éluard]

És tu ao fundo das imagens, o teu rosto contra a almofada em sinal de esquecimento


Há certos versos - às vezes poemas inteiros -
que eu próprio não sei o que querem dizer. O que ignoro
retém-me ainda. E tu, tu tens razão em interrogar. Não interrogues.
Já te disse que não sei.
                                         Duas luzes paralelas
vindo do mesmo centro. O ruído da água
que cai, no inverno, da goteira a transbordar
ou o ruído de uma gota de água caindo
de uma rosa no jardim, regado há pouco,
devagar, devagarinho, uma tarde de primavera,
como o soluço de um pássaro. Não sei que quer dizer este ruído; contudo aceito-o.
As coisas que sei explico-tas,
sem negligência.
Mas as outras também acrescentam a nossa vida.
Eu olhava
o seu joelho dobrado, como ela dormia,
levantando o lençol -
não era apenas amor. Este ângulo
era o cume da ternura, e o cheiro
do lençol, a lavado e a primavera, completava
este inexplicável, que eu procurei,
em vão ainda, explicar-te.

[Yannis Ritsos]

Vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los.





[Marguerite Yourcenar]