sábado, 23 de novembro de 2019

Nós e as palavras


(1940)
Quinta-feira, 5 de Setembro



Calor, calor, calor. Uma onda de calor que bate recordes, um Verão de recordes, se mantivéssemos um registo este Verão. Às 2 e meia um avião zumbe; passados 10 minutos sereias de ataque aéreo; 20 minutos depois, fim do alerta. Calor, repito; e tenho dúvidas que seja uma poetisa. Uma ideia. Todos os escritores são infelizes. A imagem do mundo nos livros é por isso demasiado negra. Os que não têm palavras são os felizes. Não é uma imagem verdadeira do mundo; apenas uma imagem de escritor. São felizes os músicos, os pintores? É o seu mundo mais feliz? Agora, em camisa de dormir, vou passear nos pauis.



[Virgínia Woolf]

domingo, 10 de novembro de 2019

A noite a latir na memória


Não podia deixar de amá-la porque o esquecimento não existe
e a memória é um mutatis mutandis, de maneira que sem querer
amava as distintas formas sob as quais ela aparecia
em sucessivas transformações e aflorava-me a nostalgia de todos os lugares
aonde jamais havíamos estado, e desejava-a nos parques
em que nunca a desejei e morria de reminiscências pelas coisas
que já não conheceríamos e eram tão violentas e inolvidáveis
como as poucas coisas que havíamos conhecido.

[Cristina Peri Rossi]

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

O despojamento donde despertará o coração


É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.
O que é preciso esquecer é o dia carregado de actos,
a ideia de recompensa e de glória.
O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos connosco, pois o resto não nos pertence.

[Cecilia Meireles]