terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A palavra imediata


Carta de amor:
Um saco contendo:
folhas de chá - deixei de beber chá
palha - porque tenho sede de amor por ti
uma maçã vermelha - ruborizo quando penso em ti
um fruto seco - estou extenuada como o fruto
um pedaço de carvão - o meu coração arde
uma flor - tu és belo
uma pedra - o teu coração será duro como uma pedra?
uma pena de falcão - se eu tivesse asas voaria para ti

[Maria Gabriela Llansol]

Onde te toco és tu ou o reflexo de algum pássaro a voar?



[Marcel Marc Eeman]

A noite abre os meus olhos


Diante da janela iluminada
acredita apenas na duração
do amor.

[José Tolentino Mendonça]

Amo-te como se aprendesse desde não sei que morte


sou eu que te abro pela boca
boca com boca
metido em ti o sôpro até raiar-te a cara,
até que o meu soluço obscuro te cruze toda,
amo-te como se aprendesse desde não sei que morte,
ainda que doa o mundo,
a alegria

[Herberto Helder]

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A missão


Não magoes as palavras,
nem lhes queiras mal por isso.
Afivela-te aos sapatos.
Afirma-te num sorriso.

Os teus amigos esperam-te.

Pergunta-lhes onde fica,
se lembram o paraíso.


[Ruy Cinatti]

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Tenho os olhos cheios de culpa, anda, vem, vem trazer-me o perdão



[Grace McGovern ]

Dos jogos de Inverno


debaixo das nuvens e do néon sei que ainda é noite
tu que dormes sou ainda o teu corpo o teu sonho somente
a cada instante existo um pouco mais um pouco menos conforme o teu
                                                                               [ medo a tua coragem
o teu amor o teu erro
ainda olhas para mim ainda vês alguém no lugar feito para lembrança e
                                                                                          [ esquecimento
preciso de ser ríspido e veloz como um animal correndo para a transparência
despede-te da mesquinha certeza o barro frio nas mãos
não grites água! água! ao avistar as paredes a folha
ainda agora começas minúscula letra caída no meio da noite neve
e já te vejo toda vestida de memória orgulhosa da tua crueldade
aclamando a luz a luz quando é noite riscada pelos holofotes das casernas
                                                                                                  [ dos campos
contente da tua alimentação de proteínas talhos e esquartejamentos
e a invenção de um deus à mais certa medida
aqui estás já podes mostrar o mais belo centímetro de corpo
vais a caminho de coisa alguma com o mais belo prémio reservado E este
é um poema de amor a louvável ode à tua chegada
vens atrasada e limpa como compete a uma santidade urbana
falando bom francês para este meu país la sous-france
desta vez nenhum touro mais ou menos agrícola te arrasta para o mar
                                                                                              [ Que fazer
se sem razão nenhuma insisto que tua é a noite
não consigo imaginar o inferno vê-lo contudo é fácil
é esta herança deixada pelos homens Duvido que chegues a tempo de salvá-la
vale-te da minha ignorância para sair enquanto é tempo
enquanto é de noite e o teu destino incerto

[António Franco Alexandre]

Telhados de vidro



[João Almeida]

Hoje uma senhora na rua chamou-me e deu-me um panfleto que dizia:


"Deus... enxugará dos seus olhos todas as lágrimas, e não haverá mais morte, nem haverá mais pranto, nem clamor, nem dor. As coisas anteriores já passaram."

[Revelação (Apocalipse) 21:3, 4, Tradução do Novo Mundo]

Não me pediu dinheiro, não me cobrou nada por isto. E é assim que pequenos milagres se desenham nas nossas vidas.

Não sei se


Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz
se quando vi o rapaz vi as estrelas

[Adília Lopes]

Enquanto, enquanto muito silenciosamente, ainda espero





[rui pires cabral]

O túmulo do Fernando Pessoa ou a chama que me devora a casa



[Mário Botas]

Utiliza-se o destino e o destino sabe a podre


De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração.»

[Carlos de Oliveira]

Ignorâncias


Perdi uma pérola na erva.
Pérola perdida que guarda o seu oculto oriente.
- O amor àquela que amo um dia se perderá:
pérola de orvalho que morre e que fulgura.

*

Formigas vermelhas no bambu vazio, vaso
repleto de essência de rosas -
se a luxúria enche o meu corpo fundo,
apenas minha amada o pode esvaziar.

*

Ouve-se a água abater no coração do coco verde,
e enquanto amadurece, o dúrio guarda os seus segredos.
Eu sei porque te quero nas minhas mãos,
mas tu ignoras porque te queres na minha boca.

[Herberto Helder]

Não há mal em fugir, apenas havemos de escutar a definitiva voz do vazio na hora da nossa morte


                                                         quando podíamos ter tido tanto mais





[Brendan Monroe]

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Dizeres


Este poema
começa com um homem de tronco nu
à sua mesa de trabalho e hiante
a esta hora em que de oriente a ocidente
se acendem lâmpadas trémulas e bárbaras e ferozes
e o mar é o teu nome    a esta hora pétala a pétala
em que subirei de avião para ir beijar-te os olhos
e ver  no meio do deserto  o único
o magnifico devorador de rosas a comer um pão
enquanto do Oceano resta apenas
o silêncio de uma lágrima caindo nos joelhos
        de uma criança
Espera-me onde um nome há no Ar escrito com saliva
              azul
com raiva azul
com a urina violenta dos amantes
com a sua flor azul à superfície onde crepita a morte

Choverá muito   eu sei    choverá muito
e não porei uma pedra branca sobre o assunto digo
sobre o temor de terra cada vez mais depressa
            cada vez mais depressa
e lento o peixe de plumas de águia letra a letra
dá a volta ao mundo dos teus olhos
enquanto a dentadura cintilante pronuncia o grande
       uivo
de oriente a ocidente

Certas palavras muito duras quando a noite cai
não devem ter outra origem  sabes tão bem como eu
porque agora a lava das lágrimas ao crepúsculo
são as rosas com que o poeta fala
à multidão em volta do crocodilo o animal repugnante
de costas para a luz   contra o grande uivo:

de oriente a ocidente a mesma flor podre  o estado
os segredos de estado as razões de estado a segurança
        do estado
o terrorismo de estado os crimes contra o estado
e o equilíbrio do terror
de oriente a ocidente    meu amor    de oriente
          a ocidente

Digo não     Eu digo não
digo o teu nome que diz não

[António José Forte]

O amor é o homem inacabado



[paul éluard/Claude Monet]