sábado, 28 de junho de 2014

Quando não vão longe


QUANDO OS SONHOS NÃO VÃO LONGE, correm até à infância e voltam brancos, por grandes alamedas de tristeza e de bruma, a alturas que o olhar não toca, lá onde tu estás e eu não chego. Queria acariciar os teus cabelos mortos, deixar cair entre os nossos espaços o tempo cheio de espaços antes da escuridão acabar de roer a forma da tua sombra.
    Quando há uma cama demasiado larga às cinco e dez da manhã: lágrimas, lágrimas - lágrimas. Quando se ouvem passos e não são os teus passos, quando o silêncio não é a pausa da tua respiração, quando não há essa força e esse fogo, essa paz do corpo que torna invulnerável - oh, é muito simples: o pensamento pára
      tem que parar
             pára
Quando as urtigas nascem por toda a parte, queimam, quando os pântanos alastram e as areias movediças, e a tua mão não está lá, a mão cujos dedos eu conhecia como se conhece um filho, a mão-rocha e a mão-mulher, a mão-sol, a mão-filipêndula batida pelo vento, mas enfrentando-o - é-se como o veado ferido que agoniza em silêncio.
   O que vem depois, vem como o sanfue depois de um corte fundo, não pára, mas falta-nos metade das nossas veias, metade dos nossos nervos, metade da nossa pele esfolada, metade do nosso coração gelado. Estou meio cego, perdi metade da minha idade. Falta a sombra dos teus cabelos, a raiz dos teus dentes, o meu abismo debaixo de água.

[Ernesto Sampaio]

Em ti


Aos milhares voam os pombos,
um apenas vem pousar na minha cerca.
- Eu queria morrer na ponta da tua unha,
queria ser enterrado na palma da tua mão.

[Herberto Helder]

Harriet Griselda


«Era o arquiduque. Ásteres,
lírios, dálias sob os seus bravios
dedos. Um rapaz que se demorasse
neles para cantar.»

[Fernando Luís]

Eu esperei pelo tempo transparente em nós



quarta-feira, 25 de junho de 2014

Nuas, as faias


Nuas, as faias nem memória têm
Da prata luarenta que as cobriu
(Que primavera é esta, que ternura
Vem soltar-me das mãos a mão do frio?

[José Saramago]

Pós-guerra


No fundo, bem no fundo, quando irrompia numa frase cruel, não era aos outros que dilacerava, era a si próprio que se dilacerava, e tão a sério que todos o víamos sangrar.

[Raúl Brandão]

Os olhos que não vêem longe estão no inferno


Nos quartos

das freiras

não há espelhos

Nas igrejas

não há

espelhos

Os espelhos

são o Diabo.


[Adília Lopes]

Se dançares comigo agarra-me a parte do vestido que deixo solta




[Eadweard Muybridge]

Estrela


Legenda
para aquela estrela
azul
e fria
que me apontaste
já de madrugada:
amar
é entristecer
sem corrompermos
nada.


[Carlos de Oliveira]

As proporções a dizerem - Não, leva daqui o excesso



[Akuma Aizawa]

domingo, 22 de junho de 2014

XVIII


Repeti-te até ao infinito
E fiquei vazio
Como um copo de água que se bebe
E a sede continua.

[Sebastião de Lorena]

Invisibilidades


Eu quis que o romantismo fosse uma coisa feita de merda e saísse do cu de algum bicho estupido e enraiveci.

[valter hugo mãe]

Equações



[Mario Cesariny]

As leituras que fazemos dentro de um corpo


e abri a porta que dava para o teu rosto legente.

Não disse nada, a ouvir nos teus olhos
o som da rua que entrava pelas janelas.

Sentei-me nos lugares dispersos do teu silêncio, e esperei
por ele
_ uniu-se a mim como o oxigénio e o hidrógenio
se unem em forma de água,
numa união tão rara, imponderável e banal
como os nossos corpos unidos a ler


[Maria Gabriela Llansol]

Tenho um ventro que desalojei à infamia


Não sou dona de nada
nem muito menos podia sê-lo de alguém.
Tu não devias temer
quando te estrangulo o sexo,
não penso dar-te filhos, nem anéis, nem promessas.


A terra que tenho é nos sapatos.
Minha casa é este corpo a parecer uma mulher,
não preciso de mais paredes e cá dentro
tenho muito espaço:
este deserto negro que tanto te assusta.

[Miriam Reyes]

Amor mudo


Ardendo de amor, as cigarras
cantam: mais belos porém são
os pirilampos, cujo mudo amor
 lhes queima o corpo!

[Herberto Helder]

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Ah! o tempo e as batalhas



Foi entre as sete e as oito que a sombra dos caixilhos apareceu nos cortinados e eu entrei outra vez no tempo, ao som do despertador. Era do Avô, e quando o Pai mo deu disse dou-te o mausoléu da esperança e do desejo; chega a ser dolorosamente justo que o uses para alcançar o reducto absurdum de toda a experiência humana, que responderá às tuas necessidades individuais tão bem como respondeu às do teu avô ou às do pai dele. Dou-to, não para que te lembres constantemente do tempo, mas para que te possas esquecer dele de vez em quando, sem depois te esfalfares na ânsia de o recuperar. Porque, como ele dizia, nenhuma batalha se pode considerar ganha. Nem sequer travada. O campo de batalha apenas revela ao homem a sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e de loucos.


[William Faulkner]

Trago vermelho nas mãos, acho que o coração me fugiu




[Jen Mazza]

Nocturno a duas vozes


- Que posso eu fazer
senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?

- Repara como sou jovem,
como nada em  mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
pousou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação.

- Não tenhas medo:
nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre de outra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.

- Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto  de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que meus dedos têm
para colher na noite.

- Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos
e um rumor de água
vem no vento.

- Tu és a água, a terra, o vento,
a estrela da manhã és tu ainda.

- Cala-te, as palavras doem.
Como dói um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.
Amo-te.
Amo-te para que subas comigo
à mais alta torre,
para que tudo em ti
seja verão, dunas e mar.


[Eugénio de Andrade]

terça-feira, 10 de junho de 2014

Transforma-nos em rima, que a raiva é fraco delírio


Amor, então,
também acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.

[Paulo Leminski]

Blackfriars


Tremiam-lhe os dedos, um resto
de coração vibrava delirado
noutro corpo. Cortado pelo gume
das lágrimas o amor, longa
escadaria sem patamares
ou portas possíveis.

[Fernando Luís]

Os ofícios


Os mitos são sábios e a noite é fértil... Para além de inspiração, só preciso de silêncio e de espaço mental para compor. Mesmo que não componha, posso ficar horas seguidas a olhar para o infinito.

[Bernardo Sassetti]

The most fatal thing a man can do is try to stand alone



[Eadweard Muybridge]

Não me digas que sim com as mãos


Com os lábios perseguir nas tuas mãos, a noite
que um gesto separou.
Lá fora, o muro de granito rodeia a primeira neve.
E os corvos parecem debicá-la com uma fome cheia de rancor.
Uma rapariga acena:
e a eternidade desfaz-se na clareira do gesto

[Rui Nunes]

Como se as saias delas fossem precárias iluminações de rua


Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.

[Manuel Bandeira]

domingo, 8 de junho de 2014

Eu tenho medo porque os teus erros sabem-me de cor


Sem o perdão das águas não posso viver. Sem o mármore final do céu não posso morrer.
Em ti é de noite. Em breve assistirás à corajosa exaltação do animal que és. Coração da noite, fala.
Ter morrido em quem se era e em que se amava, ter e não ter dado a volta como um céu ao mesmo tempo tormentoso e celeste.
Tivesses desejado mais que isto e ao mesmo tempo nada. 

[Alejandra Pizarnik]

Wisdom, silence, passing by



[Paul Klee]

Não te sei alojar nem ter


Não há raiz da vida,
mas é o amado que é raiz da vida.
- Quando soube que tu vinhas, o meu ventre
rasgou-se.
Não o esfreguei com óleo,
nem sei como receber-te.

[Herberto Helder]

XI


Olhos postos na terra, tu virás
no ritmo da própria primavera,
e como as flores e os animais
abrirás nas mãos de quem te espera.

[Eugénio de Andrade]

E na palavra me sustento em ti


O tamanho do teu nome
Quase já não se nota
Na estrada onde caminhas

Já não sei onde mora
A cor do sol

Pela estrada onde caminhas
As curvas entornam-nos
Sucessivamente.

[Daniel Faria]

Nunca aceitaste o convite


8./
    prometo-te que uma noite voltarei, sem bússola, regressarei com o lume do rio a guiar-me, e os olhos pousarão nos teus olhos este frémito de águas. acredito nas ruas que existem por detrás dos óculos dos marinheiros, onde descansa um barco e tu foges. não acredito em ti. um fio de água enforca-nos. foi então que resolveste prosseguir viagem sozinho, com a tua adolescência um pouco ferida,. eu acreditei no fogo e no silêncio que, de manhã, lavam os corpos, tornando-os de novo navegáveis. esperei, ainda te espero. ando por aí a mariscar, com os nativos, escondendo do mundo a tristeza que me devora o corpo.

[al berto]

quinta-feira, 5 de junho de 2014

O que nos diz a sibila


- Se alguém a ofendesse muito, perdoava, retribuía ou esquecia?

- Perdoava a uma criança, retribuía a uma mulher; tratando-se de homem, esquecia.


[Agustina Bessa-Luís]

O coração queimou-se


                                                           fez-se cinzas para poder descansar de te não ter


[exitstential]

Canção da laranja vermelha


Disseram-me que estás doente, laranja vermelha.
Estás doente da garganta, e eu estou mal da cabeça.
- Sobre as lajes em volta da igreje,
estavam sentadas três raparigas
atando os cabelos com fitas verdes.
Três túmulos se abriram e deles saíram
três belos rapazes.
Ó coração doloroso, consola-te a ti mesmo -
dores iguais a essa já o mundo viu muitas.
Coração doloroso que não estás só no mundo.

[Herberto Helder]

As linhas que tens na mão podiam bem ser os caminhos por onde passeio



[Kiyoji Otsuji]

Se o que falta não é feito de multidões mas de um só nome, o nome certo


She wished there was some place where she could go to hum it out loud. Some kind of music was too private to sing in a house cram fall of people. It was funny, too, how lonesome a person could be in a crowded house.

[Carson McCullers]

Fusões


Uma vez, estávamos à janela, era uma noite cheia de estrelas, disse-me com profunda melancolia: «É uma pena a gente ter de morrer, deixar isto...»
     
[José Régio]

terça-feira, 3 de junho de 2014

Os planetas que me rodeiam a nudez, dizes, são animais em perigo de extinção



A doçura que comove


Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,

e minha mão marinheiro.


[Eugénio de Andrade]

Os entraves


O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.
O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.

[Adélia Prado]

XXIII


Um fino fio de aço
Cortou o bolo em duas metades.
Alguém levou a minha
A outra comeram-na os cães
E os cães rosnaram,
A mim
Que não tive nada.

[Sebastião de Lorena]

Oh dá-me o que fazer em ti


As sandálias que o Outono calça de Paulo Leminski:

duas folhas na sandália
o outono
também quer andar

Ou o amor que Casimiro de Brito quer calçar:

Já que não posso mudar o mundo
deixa-me sacudir a areia
das tuas sandálias.

Somos sempre indulgentes com aqueles que vamos deixar



[exitstential]

És areia, paisagem que muda com o vento



[Vincent Griffin]


O problema da habitação


Eu que sou terra
como terra tremo sob teu peito
como-te e cuspo-te e
engulo-te os ossos.
Tem de ser assim,
fora de mim és um estranho
durmas a meu lado os anos que dormires.

[Miriam Reyes]

Se ainda não te foste, deixa-me respirar


Deixa-me respirar longamente, longamente, o cheiro dos teus cabelos, mergulhar neles o meu rosto inteiro, como um homem sedento na água de uma fonte, e agitá-los com a minha mão como um lenço cheiroso, para sacudir lembranças no ar.

[Charles Baudelaire]

Ao Inferno, senhores


Ao inferno, senhores, ao inferno dos homens,
Lá onde não fogueiras, mas desertos.
Vinde todos comigo, irmãos ou inimigos,
A ver se povoamos esta ausência
Chamada solidão.
E tu, claro amor, palavra nova,
Que a tua mão não deixe a minha mão.

[José Saramago]

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Intermitências


Dias de fim de Janeiro, ásperos e belos como a desgraça de um amor infeliz, quando o inverno já não tem peito para reanimar outro sonho de primavera dentro de nós.

[A. Neves Pinheiro]

Sou antiga como homens que esperam o mar sentados em barcos



[Francis Bedford]

Último poema do amor ausente


Todo o corpo lhes dói de acertar os relógios
De momento a momento às vantagens do tempo
Meu amor meu amor tem por vezes o gosto
Do veneno sorvido ao desabar das pontes
A mais frágil aragem os confunde
O espaço aberto enreda-lhes os passos
O convívio da vida esboroa as palavras
A liberdade é um peso enorme nos seus ombros
«Tudo quanto perdi na violência do tempo
Veio hoje até mim como o espinho da flor
Como o operário morto entre o ferro e o cimento
Da construção do amor
Foi um lento e incógnito perfume
Foi um lago sem margens intransposto
Foi uma pedra vermelha de lume
O mais belo sorrir de desgosto»

[Vasco Costa Marques]

Sincronia dos olhos e da boca


O Fialho, descrevendo o Cardia, esse rapaz ingénuo, insinuante e espontâneo, que aos dezanove anos se lembra de estoirar o coração com uma bala, por causa duma reles cantora de quarenta e dois anos – o Fialho diz:
...era isto e aquilo e uma mão enorme atirada para aqui e para acolá a toda a gente, apertando a nossa. O que nunca mais me esquece são aqueles olhos tristes e a boca moça sempre a sorrir!...

[Raúl Brandão]

Let us start, and run without looking behind us



[Ernest J. Bellocq ]

domingo, 1 de junho de 2014

Proliferar a impossibilidade


Envelhecemos separados, tenho pena, agora já é tarde, estou cansado demais para as alegrias dum reencontro. Não acredito na reconciliação ainda menos no sorriso que fizeste para as fotografias…
     
[Al Berto]

Olha:


Não olhes.
O mundo está prestes a rebentar.

[Harold Pinter]

VII


Uma grande tosca,
Um jardim sem espaços,
Um banco ausente,
Onde ninguém se senta.
Ao alcance de um toque,
Uma folha cai
Uma pedra rola,
Um pássaro grita.

Deslizo sem margens.

Não páro.

De quem me esqueci lá dentro?

[Sebastião de Lorena]

Uma questão de braços


A desistência de Bukowski:

Eu era a soma de todos os erros: não tinha um deus, ideias, nem me preocupava com política. Eu estava ancorado no nada, uma espécie de não ser. E aceitava isso. Eu estava longe de ser uma pessoa interessante. Não queria ser uma pessoa interessante; dava muito trabalho. Eu queria mesmo era um espaço sossegado e obscuro para viver a minha solidão.

Ou a luz ainda acesa de Gabriel García Márquez:

Arrastada pela família para separá-la do homem que a tinha violado aos catorze anos e continuou a amá-la até os vinte e dois, mas que nunca se decidiu a tornar pública a situação porque era um homem comprometido com outra. Prometeu-lhe que a seguiria até o fim do mundo, só que apenas mais tarde, quando resolvesse a sua situação, e ela tinha-se cansado de esperar por ele, reconhecendo-o sempre nos homens altos e baixos, louros e morenos que as cartas do baralho lhe prometiam pelos caminhos de terra e os caminhos de mar, para dali a três dias, três meses ou três anos. Na espera havia perdido a força das coxas, a dureza dos seios, o hábito da ternura, mas conservava intacta a loucura do coração.

Minudências


O que é mínimo não nos fere a mente e dessa forma pode elevar-se. Quando há demasiadas coisas à volta, perturba-me.

[David Lynch, citado pelo Público, 9 de Maio de 2014]

Endlessness runs in you like leaves on the tree of night





[Helena Almeida]

Dalla Barba, 517


Está bem. Vão passar meses
vai perder-se na bruma
dos bolsos não há nenhum
ardil.

Levantou os dedos para o adeus,
encostou a boca e o silêncio
enraizado nos cimentos
desmoronou na noite.

Não esperava não podia
esperar tanto vento
sobre esta vida.

[Fernando Luís]

A escorrência


De bruços sobre o lavatório, abro a torneira, tapo o ralo, fico alguns momentos a ver correr a esperança, que vai enchendo aos poucos a bacia. Depois fecho a torneira e, retirando a tampa, vejo-a escoar-se em gorgolejos que cada vez são mais humanos e mais fundos. É a respiração do ralo, que só então dou conta de que está dentro de mim, por uma dessas distorções a que é costume eu ser atreito e que me impede ainda de me ver no próprio espelho, que, apesar de se encontrar à minha frente, não consigo deslocar do avesso dos meus olhos.
Os meus sentidos rangem, solidários com os canos, eles que eu gostaria de poder assimilar ao mar, a um céu azul, desanuviado, e que jamais me dão do espírito visões onde não se encastoem nuvens e rebentem tempestades.
Repito a operação. Mergulho às vezes as mãos na minha esperança, mas retiro-as ao cabo de algum tempo, antes que se transformem em raízes. Destapo uma vez mais o ralo. Assim corre a amizade - penso, olhando o redemoinho -, assim correm os afectos, que, depois de encherem a bacia onde a custo nos lavamos sem os fazermos transbordar, se escoam sem regresso em direcção ao caos.

[Luís Miguel Nava]