sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Vertigens do lado de baixo


Assediados pela fome, pelos apagões, pela desvalorização dos salários e pela paralisia dos transportes - entre muitos outros males - Ana e eu vivemos um período de êxtase.

A nossa magreza, potenciada por longas deslocações que fazíamos nas bicicletas chinesas compradas nos nossos centros de trabalho, fez de nós seres quase etéreos, uma nova espécie de mutantes, capazes não obstante de aplicar as últimas energias a fazer amor, a conversar horas e horas e a ler como condenados - Ana poesia, eu, depois de muito tempo de privação, romance novamente.

Foram anos quase irreais, vividos num país lento e escuro, sempre tórrido, a desmoronar-se diariamente, mas sem cair nas cavernas da comunidade primitiva que nos espreitava.

Mas anos também em que nem a mais desoladora escassez conseguia vencer o júbilo que nos dava a mim e a Ana vivermos um com o outro, como náufragos que se amarram um ao outro para se salvarem juntos ou perecerem em companhia.

[Leonardo Padura]

Sem comentários:

Enviar um comentário