domingo, 12 de fevereiro de 2017

Duas vezes


É assim, amiga. Encontramo-nos
quando calha nos bares de antigamente,
deixando que sobre o tampo azul
das mesas volte a pousar
um baço cemitério de garrafas.


Constatamos o pior, os seus aspectos.
Corpos e livros que foram ficando
por ler na voracidade da noite de Lisboa.
De facto, crescemos em alcoolémia,
acordamos tarde, em pânico,
e perdemos os dias e os dentes
com uma espécie de resignação.
Não temos, ao que parece, serventia.


Sorrimos um pouco, ao terceiro
gin, como quem renasce para a morte,
seus gestos de ternura ou de exuberância.
Talvez tenhamos calculado mal
o ângulo da queda, esta vitória
sem nobreza dos venenos todos.


Mas agora é tarde. Tudo fechou
para nós, para sempre. O amor,
o desejo, até o onanismo da destruição.
Antes de procurares a esmola
do último táxi, fica esta imagem
parada, a desvanecer-se
no frio mais frio da memória:


não dois corpos sentados a trocarem
medo, cigarros e palavras póstumas,
mas duas vezes nada, ninguém,
o silêncio da noite destronando
as cadeiras onde por razão nenhuma
nos sentámos. Os anos, amiga, passaram.

[Manuel de Freitas]

Um dia quente, e as relembranças que dele sempre renascem.



[A. P. Levitin]

Ah e a saída, como é paradisíaca...


Estou convencida de que 
faz parte integrante da vida na terra 
sermos magoados
naquilo a que somos mais sensíveis,
no que nos é mais insuportável:
o essencial 
é como nós saímos disso.

[Rahel Varnhagen]

Ter amado Aodh num sofá de riscas, e no entanto!



[The roughness  in back of throat, Agosto 2016]

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Amar com unhas muito compridas


Porque eu amo-a extraordinariamente. Tenho-a amado com cólera - e nisto não há contradição. - Amo-a se não me incomoda - amo-a se meu fantasma, que a detesta, não quer ser livre e só se não se põe a pregar. Amo-a com contradições, com discussões, com momentos de sinceridade, de dúvida e de exaspero.

[Raul Brandão]

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Alguma redundância, sim, pó - com certeza.


À infância só se chega partindo de muito longe. A infância é aí, onde partes, não onde chegas. Olha para trás. Que vês? Nada. A memória é a única coisa que verdadeiramente te pertence, mas lembras-te de um estranho. Como poderias, há muitos anos, saber que eras apenas a lembrança de um estranho:

tu?

Lembras-te do carrinho de pau? Lembras-te do poço? O que havia debaixo da cama? O que estava escondido atrás dos cortinados?

Palavras é tudo o que tens. O carrinho de pau: palavras. O cão: palavras. O medo: palavras. Alguma vez tiveste outra coisa?


[Manuel António Pina]

Eu disse, «eu mordo» e tu pouco te ralaste; olhaste-me o sexo, condoído por tudo aquilo que eu desconhecia.



[Egon Schiele]