sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

O olhar em direcção


Porque a idade não ensina a anuência aos bons
e fáceis sentimentos.
A idade é: cada vez mais atenção.
Só te resta isso, caminhador:
o perigo.
O perigo que é o conhecimento,
o conhecimento ganho na atenção.
[Herberto Helder]

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

He venido al desierto pa reirme de tu amor


«As grandes paixões são solitárias, e transportá-las para o deserto é devolvê-las ao seu império.»

Chateaubriand citado por Søren Kierkegaard

Velar na noite

Todo o meu ser é um cântico negro
que ao repetir-te em si mesmo te levará
ao despertar dos crescimentos e florescimentos eternos
Sussurrei-te neste cântico, ah,
acrescentei-te neste cântico
à árvore e à água e ao fogo
.
*
.
Talvez a vida
seja uma rua comprida pela qual passa todos os dias uma mulher segurando um cesto
Talvez a vida
seja uma corda com a qual um homem se enforca num ramo
Talvez a vida seja uma criança a regressar a casa da escola
.
Talvez a vida seja acender um cigarro na pausa narcótica entre dois abraços
ou o trânsito ausente de um homem que passa
tirando o chapéu a um outro homem que passa
com um sorriso vazio e um "bom dia"
Talvez a vida seja esse momento vedado
em que o meu olhar se destrói na pupila dos teus olhos
E nisto reside uma sensação
que eu misturarei à impressão da lua e à descoberta da escuridão
.
Num quarto do tamanho de uma solidão
o meu coração
do tamanho de um amor
contempla os simples pretextos da sua felicidade,
o murchar da beleza das flores na jarra
a jovem árvore que plantaste no jardim da nossa casa
o canto dos canários
que entoam a medida de uma janela
.
Ah
Eis a minha sina
Eis a minha sina
A minha sina
é um céu que a queda de uma cortina me furta
A minha sina é descer umas escadas abandonadas
e encontrar algo em putrefacção e exílio
A minha sina é um passeio angustiado pelo jardim das memórias
e entregar a alma à tristeza de uma voz que me diz:
"Eu amo
as tuas mãos"
.
Planto as minhas mãos no jardim
Hei-de vicejar, eu sei, eu sei, eu sei
e as andorinhas hão-de pôr ovos
no vazio das minhas mãos manchadas de tinta
.
Penduro nas minhas orelhas brincos de cerejas gémeas
e enfio pétalas de dália nas minhas unhas
Há uma viela
onde os rapazes que me amaram,
com o mesmo cabelo despenteado,
os mesmos pescoços finos e as mesmas pernas magras,
pensam ainda nos sorrisos inocentes de uma rapariga
que foi levada pelo vento certa noite
.
Há uma viela que o meu coração
roubou aos cenários da minha infância
.
A viagem de uma forma pela linha do tempo,
fecundando a linha estéril do tempo com uma forma,
uma forma consciente de uma imagem
a regressar do festejo de um espelho.
E é assim
que alguém morre
e alguém permanece
.
Nenhum pescador procurará jamais uma pérola
num pequeno regato que se esvazia numa valeta
.
Eu
conheço uma fada pequena e triste
que instalada no oceano
toca o coração numa flauta de madeira
baixinho, baixinho
uma fada pequena e triste
que com um beijo morre todas as noites
e com um beijo renascerá a cada amanhecer


[Forough Farrokhzad]

sábado, 21 de dezembro de 2019

Difícil poema de amor

Separo-me de ti nos solstícios de verão, diante da mesa do juiz supremo dos amantes.
Para que os juízes me possam julgar, conhecerão primeiro o amor desonesto infinito
feito de marés ambulantes de espinhos nas pálpebras onde as ruas são os pontos únicos
do furor erótico e onde todos os pontos únicos do amor são ruas estreitíssimas velocíssimas
que se percorrem como um fio de prumo sem oscilação.
Ontem antes de ontem antes de amanhã antes de hoje antes deste número-tempo
deste número-espaço uma boca feita de lábios alheios beijou.
Precipício aberto: ele nada revela que tu já não saibas.
Porque este contágio de precipícios foste tu que mo comunicaste
maléfico como um pássaro sem bico.
Num silêncio breve vestiu-se a cidade.
Muito bom-dia querido moribundo. Sozinho declaraste a terceira grande paz mundial
quando abrindo os olhos me deste de comer cronometricamente às mil e tantas horas
da manhã de hoje.
Deito-me cedo contigo o meu sono é leve para a liberdade acordas-me só de pensares nela.
As casas e os bichos apoiam-se em ti. Não fujas não te mexas:
vou fixar-te para sempre nessa posição.
Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro vejo-lhe o fundo. Tens os olhos vazados.
Qual de nós os dois "quero-Te" gritou?
Bebe-me espaçadamente encostada aos muros. Se és poeta que fazes tu?
Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de pé a cauda de um cometa.
Mães entretanto vão parindo. Os filhos morrerão ainda? Entregas-te a cálculos.
Amas-me demais.
Confesso: não sei se sou amada por ti.
Virás
quando houver uma fala indestrutível devolvida à
boca dos mais vivos. Então virás vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado.
Desiludiste-me.
E iremos com o plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o leito do rio
é um filho entre os dois. Que farei de teus braços de meus cabelos benignos que faremos?
Nasci-te da minha pele com algumas fêmeas te deitei por vezes. Conheces-me.
Não me tens amor
Grave esta corda cortada agudo seixo me ataste aos olhos para me afundar.
Só por grande angústia me condenas à morte se de mim te veio a cidade
e os minúsculos objectos que já amaste ou que irás amar um dia espero.
Ah a cratera o abismo eléctrico!
Por isso o teu novo amor será comigo mais perigoso
que este imaculado com mais visco de amor cópula mortal.
Calo-me.
Reparei de repente que não estavas aqui. Pus-me a falar a falar.
Coisas de mulher desabitada. Sei que um dia desviarei sem ti os passeios rectos
esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é uma chapa de ferro ao rubro:
se acredito na tua morte começo o suicídio.
Enquanto penetrantemente te espero a luz coalhou. Os pássaros coalharam enquanto te espero.
O leite enquanto te espero coalhou. Haverá outro verbo?
Submersa, muito distante de qualquer inferno de um paraíso qualquer existo eu.
Existirão tais palavras?
É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico calado,
pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer assento.
Desça com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se fixam
sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação
em volta de mim em volta de mim de ti.
Nunca te conheci - assim explico o teu desaparecimento.
Ou antes: separei-me de ti no solstício de um verão ultrapassado .
As mulheres viajavam pela cidade completamente nuas de corpo e espírito.
Os homens mordiam-se com cio. Imperturbável pertenceste-me.
Assim nos separámos.
Não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao mesmo tempo
será impossível enquanto não houver relógios que meçam este tempo
e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.
Alguma vez pretendi dizer-te o que quer que fosse?
Falava por paixão por tibieza por desgosto por claridade por frio por cansaço
nunca por pretender dizer o que quer que fosse.
Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não sinto os ombros
é porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra escura
que carrego sobre o corpo a horas e desoras
ostentando-a como objecto público sagrado purulento.
O odor que as pedras têm quando corpos.
O apocalipse de tudo quando amamos.
O nosso sangue em pó tornado entornado.
O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos lhe respondo.
Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclusos beijos nos dentes.
A pobreza surge dentro de nós embora cautelosos deitados de manhã e de tarde
ou simplesmente de noite despertos.
Ambos meu amigo estamos sentados neste momento perfeitamente incautos já.
Contemplamos um país e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos
e admiramos os monumentos e morremos.
Inventei a nossa morte em toda a impossível extensão das palavras.
Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me adormecias devagar.
Com a precaução de quem tem flores fechadas no peito passeei de noite pela casa.
Um fantasma forçou uma porta atrás de mim. Gemendo como um animal estrangulado acordei-te.
Enterro o meu terror como um alfange na terra.
Porque é preciso ter medo bastante para correr bastante toda a casa
celebrar bastantes missas negras atravessar bastante todas as ruas
com demónios privados nas esquinas.
Só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me impus da morte.
És tu tão único como a noite é um astro.
Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita
o meu nome profissão morada telefone.
Disse-te: Eis-me.
E decepei-te a cabeça de um só golpe.
Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!
[Luiza Neto Jorge]

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Do Inferno - Cinco Aproximações


Quando penso em ti, essoutra que eu nunca mais
soube ao certo quem era, ou quem eras, em ti
e em tudo aquilo que me deste, tanto que eu
nunca soube onde colocar e logo vinha o vento
e levava, quando penso em ti e mais em tudo
o que deixaste avariado na minha vida e eram
todos os pobres artefactos dela, da minha vida
quando penso em ti, isto é, quando penso em
nós, nessa coisa insólita e paupérrima que nós
éramos, ou que nós fomos um dia, é no inferno
é ainda e só e mais uma vez no inferno que eu
penso — esse tempo esse calor esse frio essa espera
insuportável. É no inferno que penso, mas devo
reconhecer, em abono da verdade, que não era
no inferno que nós estávamos, era a dois passos
dele e se queres mesmo saber era agradável
pela boa e simples razão de que não havia mais
nada, era intensa e insuportavelmente agradável
Faltava um pouco o ar, é certo, mas quem é que
se ia importar com uma coisa dessas, havia um calor
que nos enregelava os ossos, havia um frio que nos
aquecia. Era a dois passos do inferno — estava-se bem.
[rui caeiro]