sexta-feira, 2 de maio de 2014

Ouve-se sempre a distância numa voz

 
fecho os olhos e o mundo cresce, os sons tornam-se linhas, gestos, relevos, 
abro os olhos e a luz não ultrapassa a superfície branca, presa à pele e aos objectos, não irradia, tem o vagar das grandes persistências,
há dias em que tudo é essa luz presa ao mundo, dias com uma escuridão entre os objectos, coisas que a escuridão esclarece,
há dias em que uma casa nasce nos sítios onde paro,
há dias em que a paragem é uma casa,
e o lume um som que me aquece,
 
há noites de olhos fechados : corridas de ratos no forro da casa,
há uma noite sem a voz de minha mãe, embora não tivesse havido uma noite com a voz de minha mãe,
há noites em que a voz calada de minha mãe se torna insuportável,
há noites de medo, em que não há a presença de uma voz que falte, são as noites da grande escuridão,
há a noite quotidiana, vulgar e verdadeira, em que as minhas mãos só têm a forma do teu corpo que é outra noite no interior
das minhas mãos,
há esta noite  em que estás deitada no chão do quarto e do clarão
da tarde é um pesadelo a desfazer-se em pó,
há a noite da tua pergunta,
há a noite de não te responder,
há a noite do medo dos nomes que há para a noite,
há no interior desta noite a esperança de uma noite anónima, isto é, de um silêncio e de um escuro que não se voltam para nós como uma acusação,
há um silêncio que me interroga e há todas as respostas inúteis,
há a tua morte na saliva que ficou nos meus lábios,
há a tua voz que se afastou,
ouvir um som que desconheça lábios, o do lume, por exemplo, o desta lareira com o seu quebra-fogo,
e pela casa uma vacilação que a sustém, e no extremo a ilumina, nós estamos deitados no soalho, a tarde desce pela vereda, com o mar recortado de trepadeiras, os coelhos pararam junto à sebe, de onde se ergue o vazio entre muros e troncos.
Estamos no medo, na paz do medo, com o sol a crescer para o poente,


[Rui Nunes]

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