segunda-feira, 26 de maio de 2014

Apesar do tom de elegia...


Temos o inverno à porta. A cidade pressente-o: vai-me cair o céu em cima e o céu agora não é a transparência leve de agosto ou setembro, uma coisa de nada, etérea como os escritores dizem, longe disso, é o peso das nuvens carregado de electricidade, a ameaça quase a desabar. Pressinto-o eu tam­bém: vai de facto cair não tarda muito. Basta ver como a cidade se tornou um desenho aguado e fusco a tinta da china. O clarão de barro a cozer extinguiu-se nos telhados, desapareceu a chama trémula dos grãos de areia, que me enchia o quarto toda a tarde, vinda de Montes Claros. E a propósito: os escri­tores já não chamam etéreo a nada nem ao céu de verão.
Seja como for, hoje rompeu uma ponta de sol e desço à beira-rio. Levo Luciana comigo. Conheço-a ainda mal. Cabelo azulado, um pouco mais claro do que a asa do corvo, voz com o toque da tal rouquidão que excita não há dúvida os ho­mens. Fala de montanhas cobertas de neve, uma fonte para encher a bilha, searas, fruta, o corpo nu na espuma duma corrente. Coisas naturais e ingénuas, o que é, a voz velada dá-lhes a lentidão, o erotismo, dos sonhos mais fundos. Eis o que sei a respeito dela.
Caminhamos entre os plátanos do parque. Inesperada­mente, mas da maneira habitual, insidiosa, começo a sentir o desespero que me provoca a presença das mulheres amadas. (Emanação, respiração, neblina e aroma, filtro que eu respiro boca a boca sem me saciar). Chamo-lhe desespero porque não acho outra palavra mas escrevo-a como se desenhasse nesta página um pequeno firmamento de estrelas caligráficas: ternura, língua, fogo, dentes, brevidade. Morde-se a vida, pro­va-se apenas um instante e, pior ainda, com a sensação ante­cipada de que a morte, duas mortes, estão metidas no caso. Não me expliquei muito bem. Nem admira. Fantasmas pes­soais, intransmissíveis. E agora reparo: onde eu já vou. Luciana por enquanto não passa da imagem vaga disto nas três ou quatro páginas do romance que iniciei anteontem.
Entretanto caem as primeiras gotas. Luciana obriga-me a regressar. Quando a chuva chega o costume é um mês inteiro de água. O rio pouco denso ganha dia a dia corpo, galga brus­camente as margens, rolam na espuma a fruta podre, os bi­chos arrancados às tocas, a lenha dos madeireiros, as árvores mais fracas a que a torrente mina o chão (a estabilidade). Nos caminhos barrentos, lutando contra o enxurro, os pastores e o gado voltam à serra. A cidade baixa fica inundada, há canoas nas vielas do Terreiro da Erva, esta Veneza de prostitutas orde­nadas numa hierarquia instável, onde se começa quase sem­pre pelo alto da tabela: casas de cem, cinquenta, vinte e dez mil réis. A cheia bate no portal de Santa Cruz, torna a bater, invade a igreja, submerge o túmulo de Afonso o Fundador. E por fim, em torno das colinas enregeladas, há só um lago enorme com choupos, cegonhas, o frémito do frio.
O tempo que demorou a descrição gastámo-lo nós a che­gar. Exactamente o mesmo tempo. E então, as gotas esparsas engrossaram, precipitaram-se umas atrás das outras. Desatou a chover. Não confessei ainda que a chuva me fascina, mas é verdade. Desde a infância, quando dobrava as costas contra o peitoril da janela e deixava a água alagar-me a cara ou a bebia com todo o vagar, de olhos fechados. Foi essa mania inocente que perdeu Luciana. Abri a janela, estendi-me para fora e a chuva passou por mim à pressa escorregando-me no rosto, entrou no quarto, caiu como quis nas poucas folhas do rascu­nho poisadas sobre a mesa diante da vidraça aberta, dissolveu o perfil de Luciana ainda mal esboçado, apagou-lhe a voz rouca, desfez-lhe o cabelo azul, sumiu-a, sem eu dar por nada. Com que facilidade desaparecem as mulheres, as palavras, numa simples mancha de água e tinta. Frágeis, como a cor dos telhados ou a chama dum grão de areia que a chuva apaga.
Horas depois, continuo em frente da janela. Na rua há um pouco de vento e a lâmpada balança, desnivela os telha­dos, desequilibra as paredes. Não consigo saber se os prédios pombalinos na realidade oscilam ou se a impressão me vem da vidraça embaciada que fechei quando Luciana desapare­ceu. Deixou de chover (inexplicavelmente aliás) e o luar sur­giu, as estrelas também. Para quê, tão tarde?
Apesar deste tom de elegia a vida continua, não é verda­de? Tenho de esquecer Luciana e o romance. Pensar noutra mulher, noutro romance.

[Carlos de Oliveira]

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